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A Viagem de Chihiro (2001) | Uma conto sobre a autodescoberta e espiritualidade

Responsável por popularizar produções do recém-fechado Studio Ghibli, "A Viagem de Chihiro" (Sen to Chihiro no Kamikakushi, 2001) marcou história ao ser a primeira animação estrangeira vencedora do Oscar de Melhor Animação, em 2003, e a segunda após a inclusão formal dessa categoria na premiação. O filme é dirigido por Hayao Miyazaki, personalidade destaque nesse meio, e chama atenção por seu roteiro fantasioso e deveras maduro.
Chihiro é uma garota à caminho de sua nova casa, que encontra-se infeliz com a mudança. Durante o caminho, seu pai erra o trajeto e depara-se com um enorme túnel. Curiosos, os pais de Chihiro, Akio e Yuko, atravessam a construção, chegando a um local abandonado, que julgam ser um antigo parque temático. A garota os segue, assustada. Os adultos, em seguida, ficam atraídos por um enorme banquete, e Chihiro, relutante, resolve explorar o local. Com o passar das horas e a chegada da noite, a menina descobre que ali é, na verdade, uma cidade para espíritos, com o prédio principal sendo uma Casa de Banho, propriedade de uma bruxa chamada Yubaba. Ao procurar pelos pais, a garota percebe que se tornaram porcos. Assustada, Chihiro inicia uma aventura para voltar ao mundo real e ter sua família restaurada.
Assim como Alice com seu País das Maravilhas, ou Dorothy e sua visita à Oz, "A Viagem de Chihiro" é um conto, em versão oriental, que apresenta um mundo alternativo e cheio de fantasia, além de uma protagonista que percorre a paisagem surrealista em jornada de autodescoberta, na simples função de retornar à realidade. O diferencial do longa de Miyazaki está, entretanto, no caráter espiritual da trama, que evidencia fortes crenças e traços da cultura que ambientou sua produção. Essa atitude fica clara, por exemplo, no título em inglês do longa: "Spirited Away" (Arrebatada, em tradução livre).

O túnel apresentado na trama nada mais é do que a representação de um portal espiritual, ideia posteriormente explorada por Guillermo del Toro em "O Labirinto do Fauno" (2006). A Casa de Banho é um local rico em analogias, tendo em vista que os espíritos a visitam apenas à noite, no intuito de sentirem-se mais "leves" e "limpos". Nesse mundo, os humanos geralmente são transformados em animais, o que estabelece um incrível lembrete à natureza humana. Vale ressaltar que os pais de Chihiro, por exemplo, se transformam em porcos após não resistirem às tentações de curiosidade e gula. "Espírito de porco", que tal essa expressão?               
A construção de personalidade, porém, é um dos principais trunfos do longa-metragem. No novo mundo, Chihiro é obrigada a chamar-se Sen, e luta para permanecer lembrando de seu nome inicial, pois com ele encontram-se todas as suas memórias e essência. Ao passo que percorre a nova gama de acontecimentos, a garota luta contra a dominação da bruxa Yubaba, que controla todos ali presentes. A velha, que é a representação de uma lenda oriental (assim como muitas outras nessa animação), possui uma irmã gêmea, personagem crucial nos momentos finais do filme, e que reforça o discurso de dualidade na construção da persona. O filho de Yubaba, superprotegido pela mãe, carrega traços desse fato em seu comportamento.
Entre os outros personagens, é importante destacar também um espírito "Sem Rosto", que adquire a personalidade daqueles que se aproxima. No caso de Chihiro, "Sem Rosto" assume o papel de amigo e protetor, devido à bondade e gentileza da garota. Para os gananciosos outros personagens, o espírito (que é retratado por uma sombra com máscara) apresenta postura de comportamento nocivo. Haku, por sua vez, é um enigmático garoto aprendiz de feiticeiro, que sente conhecer Chihiro desde sua infância. Haku guia a menina pelo novo mundo, a protegendo. No último ato, é visto que ele é uma das mais fortes representações da cultura oriental, por tratar-se da representação de um espírito da natureza.

"A Viagem de Chihiro" não encontra destaque positivo apenas em seu roteiro alegórico, mas nos quesitos técnicos, tendo em vista que permaneceu sendo produzido em 2D, apesar de situado no período em que a animação CGI crescia de forma latente. Porém, algumas tomadas utilizam a nova tecnologia, especialmente na experimentação de angulação e cenários, como em "A Bela e a Fera" (1991), animação pioneira nesse quesito.

Hayao Miyazaki encontrou excelência na realização deste maduro longa-metragem, que continua sendo referência para a animação japonesa, mesmo após uma década. Essa produção Ghibli pode ser listada, portanto, entre os filmes que seguem um dos objetivos mais fantásticos do cinema: apresentar novos mundos e incentivar a criatividade imaginária, além de carregar a mitologia heroica em modelo já tradicional.

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