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Opinião: "Aquarius" não foi feito para Cannes, muito menos para o Oscar

"Respeito os dois, tanto Cannes quanto o Oscar, mas eu fiz um filme para o Oscar." A frase dita pelo diretor David Schurmann em entrevista ao jornal O Globo já poderia, por si só, danificar o respeito de sua obra e justificar o susto de termos "Pequeno Segredo" indicado como representante ao Oscar pelo Ministério da Cultura. É impensável que um artista, diante seu imenso respeito à arte e seu compromisso histórico de liberdade, determine tão descaradamente que as limitações impostas à própria construção da obra refletem a um possível molde de premiação estrangeira. [full_width]

Em Hollywood isso é banal. Todo ano, assim que o Oscar chega ao fim surgem fotos e trailers de produções que já estão quase certas para a próxima edição. É, ao mesmo tempo que compreensível, desestimulante imaginar que durante mais de 80 anos, a declarada "maior premiação do cinema mundial" tenha construído um molde, uma "cota" para os traços que mais admira. Os protestos contra a academia conservadora ganharam uma força imensa desde a última edição, forçando a própria "instituição" a anunciar mudanças. Agora mais do que nunca atrelado à necessidade de abranger novos formatos, o Oscar tende a caminhar na direção contrária especialmente na categoria estrangeira. Como bem observado pela página Dias de Cinefilia, "Os últimos vencedores em Filme Estrangeiro não têm "cara de Oscar". O que eles têm em comum é o sucesso internacional e a aclamação por onde passaram."

Kleber Mendonça Filho não fez "Aquarius" para Cannes, não fez para Toronto, sequer para os outros mais de 12 festivais em que foi recebido e ovacionado mundo afora. "Aquarius" foi feito para os 155 mil espectadores que o assistiram na primeira semana de exibição, para os muitos outros que ainda irão ver, foi feito para o Brasil. Com estreia prevista para mais de 60 países, "Aquarius" está no mundo recitando para diferentes plateias a força de Clara, a força do nosso cinema.

Não era certo qual seria a decisão do Ministério. O governo (até então interino), porém, não escondeu sua repressão ao filme e ao que ele representou à resistência contra o processo de impeachment. Colocá-lo na mesma prateleira de "Ninfomaníaca" de Lars Von Trier e "Love" de Gaspar Noé ao classificá-lo em 18 anos é definitivamente uma forma de censura - medida revogada para 16 depois de protestos. Mais tarde, ao escolher os integrantes da comissão responsável pela indicação do representante ao Oscar, convoca Marcos Petrucceli, crítico de cinema que fez questão de deixar explícito em suas redes sociais o ódio pela equipe do filme e consequentemente ao filme que não havia visto ainda. A repressão a "Aquarius" era grande. Vê-lo em Hollywood, significaria testemunhar outra manifestação no tapete vermelho - dessa vez mais arquitetada e sob mais um olhar mundial.

"Crônica cativante da sociedade brasileira. Em todos os planos ou quase, Sonia Braga exibe tanta coragem quanto modéstia. Uma séria candidata para o prêmio de interpretação? Sim."  - Telerama (França)


"Aquarius vai fazer você querer morar no Brasil. Emocionante, aprofunda-se de forma tão inteligente, termina de maneira brilhante e possui o momento exato em que você enxerga Sonia Braga como indicada ao Oscar." Telegraph (Inglaterra)


Independentemente de decisões governamentais, o mundo já especulava sobre a carreira de "Aquarius". Sua mensagem tem uma força imensa, incapaz de ser ofuscada pelo rebaixamento estatal que foi submetido. A indicação do Ministério da Cultura só tem domínio sobre a categoria de "Melhor Filme Estrangeiro" - seria inviável que os mais de cinco mil votantes da academia tivessem que assistir os milhares de filmes sem um direcionamento. Ano passado, filmes como "A História da Eternidade" e "Casa Grande", que concorriam à indicação, ficaram de escanteio diante a atenção mundial de "Que Horas Ela Volta?" de Anna Muylaert. Seria complicado que a Academia conhecesse os filmes "eliminados" do processo. Esse ano, porém, não importa se o MinC desclassificou 'Aquarius'. O mundo já tem um conhecimento consciente e soberano do seu impacto.

Nesse cenário, é possível imaginar que o Oscar não se cale diante os elogios de 'Aquarius'. Seguindo o regulamento, não poderia indicar o filme na categoria estrangeira. Sonia Braga, no entanto, tem todo direto de ser lembrada na categoria de atuação. Porém, há uma série de controvérsias que impossibilitam essa situação. Em 2012, "Amour", de Michael Haneke, foi indicado não somente ao premio estrangeiro, mas também ao premio de Melhor Atriz e à categoria principal de Melhor Filme. Como o Brasil tem somente um indicado oficial, de lá poderia sair outras possíveis indicações. Passar por cima da decisão resultaria em uma manobra muito arriscada que, além de vangloriar 'Aquarius' e presenteá-lo com ainda mais visibilidade, vangloriaria o cinema brasileiro. Sabemos muito bem que Hollywood não tem a menor intenção de mostrar para o Brasil que temos um cinema consistente; sua monopolização está nos títulos que dominam as salas e até nos próprios complexos de cinemas. A maior presença em nossas salas não é somente o cinema estrangeiro, mas é principalmente estadunidense. Mas o Oscar está mudando, não é o que dizem?

Vale ressaltar que "Pequeno Segredo", assim como nosso atual presidente da república, é "inelegível" embora esteja "eleito". O Oscar determina que o filme deve ser veiculado no país de origem por ao menos 7 dias consecutivos no período entre 1 de outubro de 2015 e 30 de setembro de 2016. A estreia está prevista pelos próprios produtores para 10 de novembro desse ano. Para contornar a regra, o filme terá exibições de pré-estreia ainda este mês. 

Não assisti "Pequeno Segredo", como muitos dos brasileiros que se viram surpresos com a notícia. Além de toda polêmica, a produção pode ser um bom filme. Independente disso, assusta que David Schurmann o posicione dessa maneira.

Ao menos, fica a certeza que "Aquarius" segue sua carreira como um filme imponente, de força inabalável e de impacto eterno. Quanto ao outro, ainda não podemos saber.

+ Pequeno Segredo (2016) | Emoção, entre o crível e o artificial


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