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O Ornitólogo (2017) | Jornada de imersão caótica

O Ornitólogo : Foto Paul Hamy
O sentido de ser intransigente no cinema pode ter inúmeras funções – a maioria delas positiva. Mas quando o caos principal se perde no meio de uma ambição duvidosa, a necessidade de ser “complexo” se desqualifica. Isso porque o hermetismo de 'O Ornitólogo' é coagido pela recriação de símbolos católicos por cima de novos “ambientes”. É uma vontade de ser emblemático que torna uma jornada promissora em um espetáculo insensível de enfrentamento. 

Suas mensagens se tornam muito óbvias e os referenciais religiosos se perdem numa tediosa metáfora de conversão. Por mais que incite a quebra de paradigmas católicos, ao relacionar Santo Antônio de Pádua com um Jesus “tolo” e incomunicável, o filme se monta como uma ladainha quase maniqueísta – ainda mais ao sugerir que em cada homem “sem fé” mora um espírito de redenção. Para essa última indicação, o próprio diretor João Pedro Rodrigues surge no lugar de Paul Hamy como o futuro resultado de sua jornada. E, se logo em seguida Fernando se martiriza em perdão aos pecados e dá sermão aos peixes que sobreviveram ao dilúvio e permanecem em águas salobras, não faz com que se acredite na validez dessas mudanças. Se acusa o contrário, “crucificando” a perda da razão diante o misticismo que tenta evidenciar, torna-se ainda mais inexpressivo.

Ainda assim, é curioso que o filme saiba provocar. Com planos que conseguem ser mais legitimamente contemplativos que os caminhos do protagonista, o processo da transformação envolve em seus pequenos ápices por um som errático e elegantemente desconcertante – soando como um ruído de desconexão apontando para a confusão/perca de Fernando diante o próprio mistério de si. Aliás, ‘O Ornitólogo’ é também uma fábula sobre o desprendimento social/urbano e, por mais que faça isso de modo didático, é uma ideia que resiste ao esoterismo. 

Inclusive, ao trazer a floresta como um “purgatório” labiríntico, a imersão psicológica de Francisco rende impactos narrativos impressionantes – como quando passeamos por uma natureza estática em sua existência controversamente passiva/agressiva. Como se todo esse “mal” precisasse deixar de existir para que a conversão fosse finalizada.

Concluindo-se como um experimento de narração, a direção de João Pedro faz questão de destacar interpretações propositalmente inverossímeis. O objetivo diante essa indefinição soa incompreensível; sobretudo por criar diálogos indigeríveis, independente das possibilidades que vêm à mente. Acompanhar quase 120 minutos dessa jornada caótica é um fardo que se justifica pela curiosidade e pelo registro estético-sonoro que, aliás, é profundamente memorável. E, apesar dos pesares, ‘O Ornitólogo’ é um filme que faz permanecer os sentimentos que provoca – sejam eles de transe, de choque ou de aversão.

O Ornitólogo: Jornada de imersão caótica

  CRÍTICA  

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