Pular para o conteúdo principal

Coração e Alma (2015) | A morte e a vida bem trabalhadas

Répare les Vivants (Francça)
Ah, o cinema francês... Sendo um referencial da chamada cultura erudita, esta indústria cinematográfica possui diversas características marcantes, como suas alusões ao clássico e o seu ritmo um pouco mais lento — que dispensa o chamado clímax — em comparação a outras produções, principalmente as blockbusters. No filme "Coração e Alma" (2015), pelo qual, em tradução livre, possui o título original "Reparar os Vivos", o universo francês não poderia divergir tanto de sua essência principal, mesmo que adaptando-o para a demanda atual de assuntos modernos. Explorando o contemporâneo e mesclado-o com elementos clássicos, o trabalho da diretora Katell Quillévéré emociona constantemente, mesmo nas cenas mais monótonas, e consegue arrancar lágrimas dos despreparados nas horas certas, sabendo exatamente em qual momento tocar nas feridas e nos tabus que o ser humano carrega por natureza. Entre eles, seu principal, aquele que não deve ser nomeado ou mencionado, que ouso chamar de Morte.

O longa traz diversas histórias paralelas ligadas por duas entidades principais: Simon (Gabin Verdet), um surfista de 17 anos que sofre um acidente, e Claire (Anne Dorval), uma paciente que necessita de um transplante de coração para prolongar um pouco a vida. O grande número de personagens dividindo de forma significativa a tela com os protagonistas deixa histórias inacabadas, além da sensação de falta ao final do filme. Além disso, a falta de desenvolvimento de um dos supostos protagonistas também é algo a se considerar. Entretanto, essas "falhas" se tornam pequenas e desconsideráveis quando a obra como um todo é analisada, e o que sobra é um filme digno de ser apreciado. 

A atuação é competente e os personagens, mesmo os que pouco aparecem, são carismáticos o bastante para conquistarem seu lugar na tela, de forma que quase nenhum alcança um brilho maior que o outro. Entretanto, Tahar Rahim , mesmo com sua atuação tímida, alcança o posto de o grande herói-protagonista, e com justiça. 

Sem se dirigir a um público específico, o longa traz um ritmo lento e contínuo — o grandes problema de muitos em relação ao cinema francês —, porém muito bem trabalhado, de forma que a emoção se torna constante em todas as cenas. A mistura do contemporâneo com o clássico enriquece a produção e os ângulos das cenas inserem o espectador em um nível audacioso e arriscado, mas com sucesso, o que garante a imersão de todos da sala de cinema para dentro da história, de forma mais assertiva e fascinante que qualquer filme 3D. 

O roteiro leva os temas "morte" e "vida" a um novo patamar no longa, trabalhando-os desde o começo de forma crua e naturalista, dispensando censuras, mas ao mesmo tempo, de forma lírica e subjetiva. Para mais, muitas vezes é difícil diferenciar estes dois aspectos, que acabam por se tornando um só, graças ao trabalho competente dos roteiristas, que carrega uma filosofia própria e deslumbrante. Por fim, a sensação final é de um reconhecimento digno e honrado do corpo humano, e (por que não?) da própria alma, personagem coadjuvante que se esconde pelas cenas, mas que se torna muitas vezes a única a brilhar mais do que qualquer outro. 




/ Filme assistido no Festival Varilux de Cinema Francês 2017 /

Crítica: Coração e Alma (2015) 

 A morte e a vida bem trabalhadas


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017): com divina retribuição, Ele virá para salvá-los

Com uma atmosfera que remete a Iluminado , com seus travelings com O Único Plano de Fuga de Stanley Kubrick , planos captados com uma lente que lembra uma visão extracorpórea da rotina do bem-sucedido cardiologista Steve ( Colin Farrel ), O Sacrifício do Cervo Sagrado tenta atrair sua atenção neste mês de fevereiro.  O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017)  Com divina retribuição, Ele virá para salvá-los A história acompanha o personagem de Farrel, que mantêm contato frequente com Martin ( Barry Keoghan ), que perdeu o pai na mesa de operação na qual Steve trabalhava. Quando Martin começa a não obter a atenção desejada pelo cirurgião, coisas estranhas começam a acontecer a seus filhos. Ao acompanhar a família do médico e suas relações intrínsecas, sentimos que cada plano carrega uma estranheza suspensa e crescente pelo uso do zoom; ele te intima a mergulhar em cada diálogo na mesa de jantar, em cada andança sem pretensões pela ala de um hospital ansiando por achar o erro na imag

Homem de Ferro (2008) | O grande primeiro passo da Marvel Studios

Robert Downey Jr. sempre foi um ator talentoso, diferentemente do que muitos apontam. Apesar de seus encontros com a polícia em função das drogas, o astro sobreviveu a um intenso mergulho na dependência química e conseguiu dar a volta por cima naquele que, o próprio diretor Jon Favreau julga como um filme independente do gênero de super-herói. Sem contar com o modelo físico e com o caráter que o justificaria ao posto de protagonista, Tony Stark foi um acerto nos cinemas tão corajoso e sagaz quanto os quadrinhos do herói, criados lá em 1963 por Jack Kirby e Stan Lee . Na trama, o diretor Favreau narra o surgimento do universo Marvel a partir de um violento incidente na vida do bilionário Tony Stark, que, durante uma viagem ao Afeganistão (substituindo o Vietnã dos quadrinhos) para apresentar um novo armamento aos militares, é sequestrado por terroristas locais. Forçado a construir sua nova invenção sob pena de ser morto, Stark cria uma poderosa armadura para se libertar da cav

Paratodos (2016) | documentário necessário e inspirador

Paratodos (Brasil) À primeira vista, o documentário "Paratodos" (2016), dirigido por Marcelo Mesquita , pode parecer um daqueles especiais televisivos onde indivíduos com deficiências físicas contam suas histórias de superação. No entanto, ainda em seus primeiros minutos, percebemos a grande ambição do filme que, dividido em atos, um para cada modalidade esportiva, apresenta bem mais do que atletas paralímpicos vencendo dificuldades.  Rodado desde 2013, o documentário que, além do Brasil, traz cenas gravadas em outros países, esforça-se para sair do comum e apresenta seus personagens de forma a valorizar não só suas conquistas, mas revelar os estressantes bastidores de treinos e a rotina dos competidores paralímpicos, que muitas vezes é ainda mais complicada do que a de atletas regulares. A proposta é bastante importante para elevar a visibilidade destes atletas em nosso País, principalmente às vésperas de Olimpíadas, visto que seus feitos costumam ser bastante