Pular para o conteúdo principal

Na Vertical (2017) | Liturgia de desejos

Rester Vertical (França)
O cinema de Alain Guiraudie é sempre uma experiência desconcertante. Nada é óbvio, nem os rótulos que empregamos aos personagens e sequer os desvios e caminhos que seguem suas histórias. Não a toa, 'Na Vertical' se parece muito com a improbabilidade narrativa de 'Um Estranho no Lago'. É desafiador que Alain esteja interessado em criar suspenses íntimos com histórias tão sinceras quanto estranhas. Estranho porque adiciona valor exclusivo aos impactos sexuais sem parecer fetichista, e os filmes se reforçam como mediador desses desejos. Aqui não é diferente.

Não é mais surpresa que Alain precise de algo além de seus personagens para a verossimilhança de seu tom exaustivamente ameaçador. Para além das constantes incitações dos possíveis conflitos (e parece que a ideia é jamais acertar), o filme precisa ser uma pintura de textura única. E quanto a essa textura, ainda não cheguei à conclusão do que é mais sufocante: o silencio ou a escuridão. Em ‘Um Estranho no Lago’ a caça se torna envolvente pelas incertezas que só a escuridão é capaz de propor. E se esse é um filme que constrói uma relação mútua com o espaço (não somente por ser tema da história), neste ultrapassa qualquer abordagem visual imaginável - as paisagens secas, escuras, pálidas e imensas possuem esse impacto invejável da narrativa. Seu protagonista é um andarilho, e a imersão geográfica não podia ser tão conivente.

Em certo ponto, porém, é estranho que tudo se torne mecânico. Parte pela expressão robusta de seus personagens e das situações que enfrentam - uma característica cúmplice da câmera de Alain que se aproveita dessa frieza (mesmo que o trabalho de entrega do elenco seja impressionante, destaque para Damien Bonnard, que transpira toda a angústia e liberdade implícita). Incluindo a metáfora de feitura de histórias, o filme tem essa cara super ensaiada, a impressão de um roteiro respeitado liturgicamente. Essa característica de aparência positiva, no entanto, é brevemente enfraquecida pelos encaixes entre os pontos de virada da história. O que leva o personagem a encarar essa trajetória é um jogo de insinuações que nem sempre são atrativas – mas é também por aí que o filme torna a crescer. 

A partir de certo momento, os conflitos são os alicerces da própria verossimilhança. Não há uma ideia sequer que sirva somente de preenchimento; nos filmes de Alain tudo volta. Seja o mendigo que o encarou, seja o garoto que parou no meio da rua para lhe oferecer uma audição. A história dos lobos, por exemplo, é o gancho responsável por duas das melhores cenas de sua carreira. Por essa exatidão, é interessante que o tema central deste e também de sua filmografia em geral seja não a sexualidade, mas o desejo. 

Explicando seu título nos últimos segundos, ‘Na Vertical’ é uma obra sólida. Desencaixa as próprias regras e encara as emoções com um impacto sexual ainda mais deslumbrante. Há uma sedução no modo como Alain enxerga essa história, e só isso seria capaz de desconcertar quem espera que atenda alguma expectativa. Uma experiência que lembra o espírito de ‘O Ornitólogo’, de João Pedro Rodrigues, quanto a expressão imediata do desejo, a exploração do outro, e a jornada de fuga. Alain Guiraudie, porém, descobre muito mais coisas.

+ Crítica: O Ornitólogo (2017) | Jornada de imersão caótica

Crítica: Na Vertical (2017)


Liturgia de desejos

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017): com divina retribuição, Ele virá para salvá-los

Com uma atmosfera que remete a Iluminado , com seus travelings com O Único Plano de Fuga de Stanley Kubrick , planos captados com uma lente que lembra uma visão extracorpórea da rotina do bem-sucedido cardiologista Steve ( Colin Farrel ), O Sacrifício do Cervo Sagrado tenta atrair sua atenção neste mês de fevereiro.  O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017)  Com divina retribuição, Ele virá para salvá-los A história acompanha o personagem de Farrel, que mantêm contato frequente com Martin ( Barry Keoghan ), que perdeu o pai na mesa de operação na qual Steve trabalhava. Quando Martin começa a não obter a atenção desejada pelo cirurgião, coisas estranhas começam a acontecer a seus filhos. Ao acompanhar a família do médico e suas relações intrínsecas, sentimos que cada plano carrega uma estranheza suspensa e crescente pelo uso do zoom; ele te intima a mergulhar em cada diálogo na mesa de jantar, em cada andança sem pretensões pela ala de um hospital ansiando por achar o erro na imag

Homem de Ferro (2008) | O grande primeiro passo da Marvel Studios

Robert Downey Jr. sempre foi um ator talentoso, diferentemente do que muitos apontam. Apesar de seus encontros com a polícia em função das drogas, o astro sobreviveu a um intenso mergulho na dependência química e conseguiu dar a volta por cima naquele que, o próprio diretor Jon Favreau julga como um filme independente do gênero de super-herói. Sem contar com o modelo físico e com o caráter que o justificaria ao posto de protagonista, Tony Stark foi um acerto nos cinemas tão corajoso e sagaz quanto os quadrinhos do herói, criados lá em 1963 por Jack Kirby e Stan Lee . Na trama, o diretor Favreau narra o surgimento do universo Marvel a partir de um violento incidente na vida do bilionário Tony Stark, que, durante uma viagem ao Afeganistão (substituindo o Vietnã dos quadrinhos) para apresentar um novo armamento aos militares, é sequestrado por terroristas locais. Forçado a construir sua nova invenção sob pena de ser morto, Stark cria uma poderosa armadura para se libertar da cav

Paratodos (2016) | documentário necessário e inspirador

Paratodos (Brasil) À primeira vista, o documentário "Paratodos" (2016), dirigido por Marcelo Mesquita , pode parecer um daqueles especiais televisivos onde indivíduos com deficiências físicas contam suas histórias de superação. No entanto, ainda em seus primeiros minutos, percebemos a grande ambição do filme que, dividido em atos, um para cada modalidade esportiva, apresenta bem mais do que atletas paralímpicos vencendo dificuldades.  Rodado desde 2013, o documentário que, além do Brasil, traz cenas gravadas em outros países, esforça-se para sair do comum e apresenta seus personagens de forma a valorizar não só suas conquistas, mas revelar os estressantes bastidores de treinos e a rotina dos competidores paralímpicos, que muitas vezes é ainda mais complicada do que a de atletas regulares. A proposta é bastante importante para elevar a visibilidade destes atletas em nosso País, principalmente às vésperas de Olimpíadas, visto que seus feitos costumam ser bastante