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Carros 3 (2017) | Depois da alucinação, a repetição

Carros 3 : Poster
Cars 3 (EUA)
O universo de ‘Carros’ já nasceu inverossímil quando apresentado em 2006. Mas a mente que havia concebido há mais de 10 anos a família de personagens mais empática da animação moderna, John Lasseter, encontrou rapidamente em toda a inconsistência uma aventura divertida. Desde os primeiros segundos, compreende-se que seu protagonista Relâmpago McQueen é um personagem que convém às fórmulas do estúdio; mais tarde, ao encontrar a Radiator Springs, é emocionante reconhecer que um dos alicerces de sua construção dramática está em tudo que se assemelha a ‘Toy Story’. A outra parte é pura diversão desse mundo da velocidade – as cenas de corrida parecem uma versão benéfica da arrogância de ‘Velozes e Furiosos’ com o que resta de bom do lirismo de impacto à lá Michael Bay. E, de repente, ‘Carros’ funciona muito bem. Mas há uma centelha de exagero muito evidente, e não demorou muito para isso ser exposto: ‘Carros 2’ é ridículo em tudo que tenta. A terceira aposta da franquia, no maior falso estilo de despedida de ‘Toy Story 3’, não causa a mesma raiva, mas tem tão pouco a dizer que a memória de 2006 é ameaçada. 
Embora exista uma defesa muito clara quanto a qualquer julgamento à estrutura de um roteiro onde carros falam e namoram (alguém sabe como?), é muito difícil compreender como as coisas realmente funcionam nessa história. A Rust-eze é vendida duas vezes sem qualquer cerimônia, e os dramas que surgem a partir disso são chulos. Claro, nada disso precisa fazer sentido em um filme construído para o olhar infantil – mas é só isso mesmo? É decepcionante perceber que a Disney/Pixar se contente com essa justificativa, que sinta a necessidade de fazer um produto próximo a superficialidade de ‘Aviões’. A duas continuações de ‘Toy Story’ foram pensadas para muito além de sua rentabilidade nos milhares de brinquedos (chega a ser engraçado que ‘Carros 3’ até brinque com isso). 

Mas a questão não é que ‘Carros 3’ seja entediante e desnecessário. Aliás, o mote da história é realmente interessante, essencialmente porque há um objetivo muito claro sobre o desgaste de McQueen nas pistas, e espelhar isso à memória de 2006 é emocionante – ainda mais quando cai a ficha que já passaram 10 anos desde que “Eu sou a velocidade” invadiu a tela escura do cinema. O ponto é que só essa afetividade não é capaz de sustentar a mesma estrutura, não somente em técnica dramática, mas em emoção. 

A missão de McQueen, endossada por uma discussão reduzida sobre a perturbação do “adeus”, é provar a si mesmo que é capaz. Ele precisa treinar como nunca antes, precisa vencer a Copa Pistão, quer dizer... A corrida lá da Flórida. Para que essa história encontre alguma consistência, somos apresentados a Cruz Ramirez, uma personagem de carisma, nuances e projeções bem desenhados. Utilizada como um gancho explícito de melodrama, é elevada a chave da história – com direito a humilhação de um homem (McQueen) que não suporta ser atrapalhado por alguém inferior a si. Isso até seria interessante se tudo não fosse feito de modo brusco, tanto o ‘desabafo’ quanto o ‘plot twist’ são “qualquer coisa” tratados com megalomania.

Mas o que o filme não entende, é que essa megalomania não se sustenta sem emoção, sem o inesperado. Quando Cruz recria um movimento ‘histórico’ do ancião Doc Hudson, não há sequer um terço da emoção de quando McQueen derrapa no gramado sob o olhar do próprio Doc. Talvez tendo noção do déficit em torno da desconhecida, o roteiro precisa que ela seja tola e de consciência unicamente infantil; só assim o filme tenta buscar alguma surpresa diante a superação. 

Brian Fee vem de departamentos internos de outros filhos do estúdio, e sua ambição diante uma história que também ajudou a compôr no papel, ao menos revela uma direção impressionada. Não sei se está ciente da pouca força que reside no próprio roteiro, mas sua condução visual (munido de uma equipe esforçada de fotografia) não liga muito para isso. A insistência nos detalhes e nas grandes paisagens é também fruto do que as técnicas de animação evoluíram desde que visitadas pela primeira vez. E o interessante é que não há uma dualidade quanto as inovações visuais, deixando, por exemplo, os reflexos da lataria do McQueen idênticos aos de 2006. Mas a beleza à parte está lá, deixando a obra em alguns momentos inacreditavelmente reais.

O sentimento comovente de ‘Carros 3’ ainda existe em alguns momentos específicos, mas tudo por se acoplar à origem. Tanto explicitamente, por apontar o respeito de McQueen diante seu passado, quando de modo implícito, por, mesmo que de modo curto e truncado, fazer a plateia que era criança há 10 anos lembrar de uma família de amigos que estranhamente fazia sentido – e, que assim como os bons filmes da Disney/Pixar, era algo novo. O que falta a ‘Carros 3’ é ser algo além da repetição; talvez o trauma da alucinação anterior tenha estagnado a aventura.


Crítica: Carros 3 (2017)

Depois da alucinação, a repetição

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