Pular para o conteúdo principal

Editorial. O show de todo artista tem que continuar

Resultado de imagem para carlota joaquina marieta severoO cinema brasileiro viveu momentos de terror em sua história, períodos de ameaça explícita ou modesta, afetando de todo modo sua imposição diante a ampla participação do produto estrangeiro. Na década de 30, um acordo feito entre o governo brasileiro e os EUA previa a importação sem taxas de filmes norte-americanos, e essa relação entre estratégias políticas e a cultura nacional viveu maior parte em conflito. A ameaça concreta mais recente veio com a eleição de Fernando Collor, em 1989, tão próximo da redemocratização do país. Com a promessa de causar uma reforma no Brasil, deu fim às principais ferramentas de incentivo governamental à cultura entregando ao setor um longo período de apagão. Nos anos seguintes, os mesmos “progressistas” que comemoraram a atitude seriam vítimas de um episódio de confisco das poupanças bancárias inédita em nossa história.

Editorial. O show de todo artista tem que continuar

A eleição de Jair Bolsonaro à presidência do país traz dúvidas em relação à existência do cinema brasileiro. A história pode ser repetir?


Mas voltamos. Após a sombria era Collor, o chamado “Cinema da Retomada” deu conta da ascensão, e a nossa identidade cultural já não era a mesma dos grandes estúdios de cinema ou ligados a TV. Fomos descobrindo um cinema ainda mais plural, e é visível que esse processo continue até hoje. Por falar em hoje, não é de se assustar que os artistas brasileiros estejam receosos que toda essa história possa se repetir com Jair Bolsonaro, presidente eleito no último domingo, 28, com quase 58 milhões de votos. A democracia pode trazer algumas verdades duras, como o fato de o Brasil ter legitimado um projeto bélico-religioso como a salvação do país.
[full_width]

Essa ameaça, porém, não é bem uma novidade. Em 2016, quando Michel Temer assumiu a presidência após o impeachment de Dilma Rousseff, tratou de excluir o Ministério da Cultura. Com a revolta da classe artística e da repercussão internacional, porém, a decisão não durou muito. O ministério vem se mantendo de pé apesar dos trancos, e até teve um líder sem caráter golpista, o diplomata Marcelo Calero, que também não durou muito tempo; pediu demissão após se pressionado por outro ministro de Temer em um processo criminoso. O ministério completamente imaturo chegou ao ponto de, hoje, ter a frente Sérgio Sá Leitão, jornalista que incentivou recentemente que o TSE investigasse o ex-Pink Floyd Roger Waters por ter enxergado num manifesto contra o fascismo, uma campanha eleitoral. O mesmo ministro que parabenizou a vitória do presidente que irá excluir o ministério do qual é chefe.

Depois dessa trajetória, chegamos a Bolsonaro. A expectativa é que o deputado federal pretenda ser um entremeio de Collor e Temer com uma pitada de autoritarismo. Declarou que irá eliminar o Ministério da Cultura e reduzir a pauta a uma pasta ministerial. O plano de governo com que Bolsonaro foi eleito sequer cita a cultura e sua equipe tampouco se pronuncia sobre. Se para Paulo Guedes, futuro ministro da economia, nem o bloco Mercosul é prioridade, porque podemos pensar que a cultura será num governo que carregou como principal muleta eleitoral o armamento social? Dayane Pimentel, presidente do PSL na Bahia, disse numa entrevista publicada ontem, 30, que o presidente irá fiscalizar a agenda cultural e intelectual do estado. É um monitoramento que nos lembra outra página infeliz da nossa história.

Mas apesar de toda ameaça, há esperança em torno da resistência de uma nova safra de artistas. Cineastas, músicos, bailarinos, teatrólogos, e uma penca de pensadores de uma arte que vem se tornando cada vez mais política - não aos moldes do Cinema Novo, porém ainda mais assertiva pela pluralização do acesso democrático. Mas entendemos que a arte, em sua essência, é como a Força Estranha de Caetano Veloso, é um ímpeto, uma expressão imediata, é naturalmente resistência. Por essa perspectiva, é justamente num período de crise que tem mais potencial para aflorar ideologicamente. Glauber Rocha, o pai do cinema brasileiro como revolta, deu uma declaração em pleno regime militar brasileiro que muito parece ter a ver com os dias de hoje: “A ditadura nunca foi desculpa para não fazer cinema”.

É em torno dessa resistência que vive a esperança do título deste editorial. A frase é retirada de O Bêbado e a Equilibrista, uma das mais brilhantes músicas em referência às barbaridades da ditadura. Composta por Aldir Blanc e João Bosco, conhecida na interpretação emergencial de Elis Regina, a canção faz uma trajetória da cultura que atravessou um dos tempos mais obscuros de nossa liberdade, e resistiu como uma equilibrista. Mesmo sabendo que poderia cair, machucar-se, ou até mesmo deixar de existir, o show continuou até à reverência seguida de palmas da platéia.

Esperamos que essa história não se repita, que o projeto de privatizações, os acordos com Donald Trump, a hiper vigilância na educação brasileira, e uma série de outras diretrizes, não iniba nossa expressão ou vontade de olhar para o Brasil dentro da sala de cinema. Apesar de tudo, o Quarto Ato continuará por aqui, fazendo sua parte para que a arte continue vibrando, transformando e levando diferentes discussões à sociedade brasileira. Nós resistiremos principalmente porque, do lado de cá, também somos artistas. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017): com divina retribuição, Ele virá para salvá-los

Com uma atmosfera que remete a Iluminado , com seus travelings com O Único Plano de Fuga de Stanley Kubrick , planos captados com uma lente que lembra uma visão extracorpórea da rotina do bem-sucedido cardiologista Steve ( Colin Farrel ), O Sacrifício do Cervo Sagrado tenta atrair sua atenção neste mês de fevereiro.  O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017)  Com divina retribuição, Ele virá para salvá-los A história acompanha o personagem de Farrel, que mantêm contato frequente com Martin ( Barry Keoghan ), que perdeu o pai na mesa de operação na qual Steve trabalhava. Quando Martin começa a não obter a atenção desejada pelo cirurgião, coisas estranhas começam a acontecer a seus filhos. Ao acompanhar a família do médico e suas relações intrínsecas, sentimos que cada plano carrega uma estranheza suspensa e crescente pelo uso do zoom; ele te intima a mergulhar em cada diálogo na mesa de jantar, em cada andança sem pretensões pela ala de um hospital ansiando por achar o erro na imag

Homem de Ferro (2008) | O grande primeiro passo da Marvel Studios

Robert Downey Jr. sempre foi um ator talentoso, diferentemente do que muitos apontam. Apesar de seus encontros com a polícia em função das drogas, o astro sobreviveu a um intenso mergulho na dependência química e conseguiu dar a volta por cima naquele que, o próprio diretor Jon Favreau julga como um filme independente do gênero de super-herói. Sem contar com o modelo físico e com o caráter que o justificaria ao posto de protagonista, Tony Stark foi um acerto nos cinemas tão corajoso e sagaz quanto os quadrinhos do herói, criados lá em 1963 por Jack Kirby e Stan Lee . Na trama, o diretor Favreau narra o surgimento do universo Marvel a partir de um violento incidente na vida do bilionário Tony Stark, que, durante uma viagem ao Afeganistão (substituindo o Vietnã dos quadrinhos) para apresentar um novo armamento aos militares, é sequestrado por terroristas locais. Forçado a construir sua nova invenção sob pena de ser morto, Stark cria uma poderosa armadura para se libertar da cav

Paratodos (2016) | documentário necessário e inspirador

Paratodos (Brasil) À primeira vista, o documentário "Paratodos" (2016), dirigido por Marcelo Mesquita , pode parecer um daqueles especiais televisivos onde indivíduos com deficiências físicas contam suas histórias de superação. No entanto, ainda em seus primeiros minutos, percebemos a grande ambição do filme que, dividido em atos, um para cada modalidade esportiva, apresenta bem mais do que atletas paralímpicos vencendo dificuldades.  Rodado desde 2013, o documentário que, além do Brasil, traz cenas gravadas em outros países, esforça-se para sair do comum e apresenta seus personagens de forma a valorizar não só suas conquistas, mas revelar os estressantes bastidores de treinos e a rotina dos competidores paralímpicos, que muitas vezes é ainda mais complicada do que a de atletas regulares. A proposta é bastante importante para elevar a visibilidade destes atletas em nosso País, principalmente às vésperas de Olimpíadas, visto que seus feitos costumam ser bastante