Pular para o conteúdo principal

Vidro (2019) | M. Night Shyamalan volta ao sadismo e às narrativas de fábula

Vidro, por si só, já era uma missão complicada. Mas o diretor M. Night Shyamalan sempre foi um homem de escolhas duvidosas, roteiros divergentes e tramas absurdas. Tudo, aparentemente em sua cabeça, funciona muito bem, tanto que ele produz, escreve e dirige os seus filmes com o seu orçamento e com os astros que ele quiser, sem nenhuma mão de estúdio ou produtor. Talvez por isso ele esteja sempre à frente do tempo, visto que lança obras que facilmente são criticadas negativamente e depois se tornam referências de como escrever um roteiro e produzir um filme. Isso aconteceu com Corpo Fechado, filme de super-heróis com drama e sem ação, Sinais, obra de horror com comédia, e A Vila, longa que, apesar de se auto sabotar no plot twist, é um exemplo de como manter o espectador limpando as lagrimas com uma mão e com a outra na boca segurando o grito.


Vidro, por outro lado, apesar de manter o ritmo corrido de A Visita e Fragmentado, filmes anteriores do indiano, está sendo ainda mais divisivo que outros, como Fim dos Tempos e A Dama na Água. Ainda que longe de ser uma obra-prima como Corpo Fechado e A Vila, Vidro, no entanto, é um retorno do diretor ao seu velho estilo. É um filme que tem toda a sua estética, movimentação de câmera, temas fantásticos e/ou religiosos e um roteiro que tira personagens humanos da zona de conforto para algo maior que eles.


A obra, no caso, finaliza a história iniciada em 2000 com Corpo Fechado e de Fragmentado, longa lançado em 2017. Aqui ele une todos os personagens principais dos anteriores e cria uma história de sobrevivência mais intensa. Nesse caso, os super-humanos, como são chamados pela psiquiatra vivida por Sarah Paulson, estão em um centro terapêutico para compreender os seus “poderes” e convencê-los de que são apenas criminosos. Se encontra nesse lugar: David Dunn, vivido dramaticamente por um Bruce Willis cansado e mais depressivo que em Corpo Fechado; Elijah Price, que tem um Samuel L. Jackson divertido e perigoso, como sempre; E Kevin Crumb, interpretado por James McaVoy, naquela que já é a atuação de sua vida.

Mas antes dos astros, tem o roteiro. E toda sua plot, apesar de simples e literal, tem uma crença extremamente importante no coração do filme, que abusa de close-up (técnica recorrente do diretor) com fundo desfocado, onde é exatamente nesses planos que essa verdade do roteiro se manifesta. Até mesmo nos planos que omitem coisas, como naquele do enfermeiro de costas pra nós, Vidro é um filme que te encara e é completamente frontal. A primeira sequência, por exemplo, mostra Patrícia, uma das 23 personalidades de Kevin, quebrando uma quarta-parede que se quer tinha sido construída e assim se vai o filme inteiro, dado que o diretor quer que o público entre na jornada e entenda se eles são super-heróis ou não.

O roteiro ainda brinca com a questão da crença, que, de novo, é uma questão central na filmografia de Shyamalan. E aqui ele encontra o limite da conversão religiosa, onde todos aqueles diálogos de poder do pensamento positivo é mais forte que qualquer elemento sobrenatural fantástico. E o diretor brinca com isso, até mesmo na sua participação hilária do filme, que contesta o poder de David e ainda cita "Jesus" como forma de proteção do seu ideal cristão. E, assim como Sinais, o sobrenatural ganha energias somente no terceiro ato, quando a apoteose do diretor é testada nas cenas de ação e na construção de um embate calcado no universo fantástico de super-heróis dos quadrinhos.

Nesse sentido, Vidro parece ser um filme bem mais sucedido do que Fragmentado, uma vez que os motivos dos personagens esquizofrênicos são desconsiderados para criar entornos de mundos próprios. E nesse contexto temos as atuações magistrais que vão do drama ao suspense em uma questão de segundos, como no flashback do Elijah criança até a sequência que o mesmo assume, finalmente, o papel de Senhor Vidro. O diretor deixa a câmera embaçada para manifestar essa construção e só depois nos surpreende com o que os sofríveis personagens são capazes.

E aí está a genialidade do diretor, que, de repente, se desprende do mundo natural e de suas cores para que os personagens, por questão de simples sobrevivência, passem a se manifestarem como elementos do sobrenatural que eles tanto se orgulham. É uma temática simples, de cenário didático, assim como a longa e intensa maldade do mundo dos homens que, mais uma vez, usa da razão para justificar os seus erros, quando estão cegos do fantástico ao nosso redor.

Crítica: Vidro (2019)

M. Night Shyamalan volta ao sadismo e às narrativas de fábula

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017): com divina retribuição, Ele virá para salvá-los

Com uma atmosfera que remete a Iluminado , com seus travelings com O Único Plano de Fuga de Stanley Kubrick , planos captados com uma lente que lembra uma visão extracorpórea da rotina do bem-sucedido cardiologista Steve ( Colin Farrel ), O Sacrifício do Cervo Sagrado tenta atrair sua atenção neste mês de fevereiro.  O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017)  Com divina retribuição, Ele virá para salvá-los A história acompanha o personagem de Farrel, que mantêm contato frequente com Martin ( Barry Keoghan ), que perdeu o pai na mesa de operação na qual Steve trabalhava. Quando Martin começa a não obter a atenção desejada pelo cirurgião, coisas estranhas começam a acontecer a seus filhos. Ao acompanhar a família do médico e suas relações intrínsecas, sentimos que cada plano carrega uma estranheza suspensa e crescente pelo uso do zoom; ele te intima a mergulhar em cada diálogo na mesa de jantar, em cada andança sem pretensões pela ala de um hospital ansiando por achar o erro na imag

Homem de Ferro (2008) | O grande primeiro passo da Marvel Studios

Robert Downey Jr. sempre foi um ator talentoso, diferentemente do que muitos apontam. Apesar de seus encontros com a polícia em função das drogas, o astro sobreviveu a um intenso mergulho na dependência química e conseguiu dar a volta por cima naquele que, o próprio diretor Jon Favreau julga como um filme independente do gênero de super-herói. Sem contar com o modelo físico e com o caráter que o justificaria ao posto de protagonista, Tony Stark foi um acerto nos cinemas tão corajoso e sagaz quanto os quadrinhos do herói, criados lá em 1963 por Jack Kirby e Stan Lee . Na trama, o diretor Favreau narra o surgimento do universo Marvel a partir de um violento incidente na vida do bilionário Tony Stark, que, durante uma viagem ao Afeganistão (substituindo o Vietnã dos quadrinhos) para apresentar um novo armamento aos militares, é sequestrado por terroristas locais. Forçado a construir sua nova invenção sob pena de ser morto, Stark cria uma poderosa armadura para se libertar da cav

Paratodos (2016) | documentário necessário e inspirador

Paratodos (Brasil) À primeira vista, o documentário "Paratodos" (2016), dirigido por Marcelo Mesquita , pode parecer um daqueles especiais televisivos onde indivíduos com deficiências físicas contam suas histórias de superação. No entanto, ainda em seus primeiros minutos, percebemos a grande ambição do filme que, dividido em atos, um para cada modalidade esportiva, apresenta bem mais do que atletas paralímpicos vencendo dificuldades.  Rodado desde 2013, o documentário que, além do Brasil, traz cenas gravadas em outros países, esforça-se para sair do comum e apresenta seus personagens de forma a valorizar não só suas conquistas, mas revelar os estressantes bastidores de treinos e a rotina dos competidores paralímpicos, que muitas vezes é ainda mais complicada do que a de atletas regulares. A proposta é bastante importante para elevar a visibilidade destes atletas em nosso País, principalmente às vésperas de Olimpíadas, visto que seus feitos costumam ser bastante