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O Animal Cordial (2018) | A essência do medo

Logo na primeira sequência de O Animal Cordial, a diretora Gabriela Amaral Almeida opta por um plano aberto, revelando todos os personagens em suas devidas marcações dentro de um restaurante. Com esses 30 segundos iniciais, é possível identificar o dono do lugar, os cozinheiros no centro e um cliente, do outro lado da sala. Mais que isso: a diretora ainda coloca uma janela entre os personagens e o público, que, graças aos detalhes, simula uma grade, simbolizando o aprisionamento de todos eles.

Em seguida, a diretora apresenta Inácio, dono desse restaurante de classe média, isolado no centro de São Paulo. Sabendo do fracasso prematuro de seu estabelecimento, o homem gerencia de forma agressiva, deixando os seus funcionários, em especial o cozinheiro Djair, em uma situação de relação abusiva. Após essa introdução, que se desenvolve entre os corredores do lugar, o restaurante sofre uma tentativa de assalto, o que força Inácio a tomar medidas violentas contra os assaltantes. 

A diretora, que também assina o roteiro, esbanja uma genialidade inesperada durante os 97 minutos de projeção. Em seus atos, Gabriela expõe um Brasil desesperado por uma atenção, dado que os personagens representam símbolos distintos da nossa nação em 2018, algo parecido com o que Quentin Tarantino fez em Os Oito Odiados, de 2015. Esses personagens representam a descrença no Estado, o direito do cidadão de bem, o armamento como desculpa de defesa e a relação patrão-empregado, explorada, obviamente, pelo primeiro. Uma receita que torna as vítimas em um esboço de um país tomado pelo ódio e violência.

Inácio, por exemplo, sendo o protagonista da obra, representa uma parcela significativa do Brasil. O dono do restaurante, vivido por Murilo Benício, reage ao assalto, matando um dos bandidos e rendendo o outro. O seu discurso, no entanto, resolve todo tipo de enigma dentro daquele personagem. “Não adiantou chamar a polícia da última vez”. A partir disso, ele, que se mostrava extremamente elegante e cordial, se exibe como um sociopata. Sua disposição nasce do princípio de que àqueles presentes mereciam vingança, não só pelo assalto, mas pela humilhação envolvida. E Gabriela faz isso sabiamente. Sabendo que vive em um país que aplaude torturadores, não existe gênero mais perfeito que o terror protagonizado por um slasher. Nossos demônios são ampliados.

A diretora, no meio disso, ainda propõe em dar consistência aos seus personagens, mesmo eliminando-os rapidamente. Ela se envolve com o slasher movie, mas respeita todos presentes, que, precisam, sim, de desenvolvimentos. Não só pela empatia, mas pela construção de tensão, que nos faz temer involuntariamente pelo destino de todos, diferentemente do que o gênero tem se mostrado atualmente, onde os personagens pouco importam, sendo meros obstáculos para o assassino. Os protagonistas e seus temas são relevantes. 

Já o elenco, composto por Camila MorgadoHumberto CarrãoErnani MoraesJiddú PinheiroAriclenes Barroso, é invejável. Todos se dão ao máximo, seja no olhar, nos poucos diálogos ou nas feições que vão do medo ao ódio. No entanto, o filme pertence ao trio Murilo BenícioLuciana Paes Irandhir Santos, que se transformam durante os atos.

Benício, que começa de modo elegante, mas com uma raiva crescente dentro de si, se mostra um ator muito mais significativo que aquele de novelas. Aqui ele interpreta um monstro enjaulado, ansiando pelo sangue de suas vítimas. Há momentos, inclusive, claramente inspirados em Anthony Hopkins em O Silêncio dos Inocentes. O seu personagem simplesmente dá medo. 

Já Luciana, dona de um talento incontrolável, surge aqui como uma personagem doce e que, como seu amante, se transforma em um monstro, violenta até mesmo no modo de se alimentar. Há, inclusive, uma cena amorosa entre ela e o protagonista extremamente competente, rivalizando em realismo com aquela de Boi Neon e de grotesco com a de Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois. É, desde já, uma das cenas mais icônicas do cinema contemporâneo brasileiro.

E com Irandhir o filme ganha mais forças. Há uma sequência envolvendo o seu personagem e o de Benício que facilmente não será esquecida, visto que o ator, apesar de demonstrar medo, desafia o seu antagonista e o provoca com uma raiva descontrolada. Tais transformações durante esse ato são representativas para a conclusão da obra que, felizmente, depende do astro para existir.

Em sua conclusão, é perceptível que o longa possui mais esmero que qualquer outro metido a terror de 2018. Sua trilha sonora, inclusive, possui arranjos próximos do Giallo, gênero italiano. A trilha e edição de som mesclam órgãos e sintetizadores, criando um aspecto de lugar menor do que ele já é. 
O esmero também segue a mensagem que a diretora quis passar. Os personagens são profundos, os temas políticos são elegantemente explorados com calma e o filme não se torna uma válvula de espace de sadismo para quem é fã do gênero. O Animal Cordial é um filme que necessita ser visto e comentado, assim como o outro horror nacional de 2018, As Boas Maneiras, que se apropria do gênero para contar uma história que nós, brasileiros, precisamos escutar.

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