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Amantes: Fragmentos de cartas, poemas, mentiras, retratos

Cinema é, em sua essência, imagem. É quadro que pensa em palavras energéticas, em imagens que criam sensações. O texto, por si só, funciona essencialmente para expressar as energias dos personagens, diferentemente de uma obra literária que precisa do esforço do leitor para imaginar os fotogramas descritivos. Pensando nisso, os melhores cineastas, através de estados sensoriais, aplicam na linguagem uma técnica que depende dos olhares empáticos do público consumidor.

Amantes: Fragmentos de cartas, poemas, mentiras, retratos


  CRÍTICA 

James Gray fez isso ao revisitar Noites Brancas, livro russo de Fiódor Dostoiévski que atualiza o que é sofrer por amor. Em Amantes, obra de 2009, o cineasta aplica, por exemplo, os olhares sofridos de uma mãe para o filho, como se estivesse em uma vigília, diferentemente de uma simples e banal patrulha, como acontece normalmente. Essa imagem de proteção é o que movimenta o filme para frente. 

Lado a lado dessas pistas, Gray fala de uma relação extremamente doída entre um filho e uma mãe. Temos de cara uma tentativa de suicídio da qual o personagem vivido por Joaquim Phoenix é salvo e se arrepende. Durante o ato, nos é dada uma imagem e uma voz melancólica o suficiente para entender o que levou o protagonista a tentar se matar com poucos minutos de filme. Debaixo da água, ficamos com ele. Temos imagens, informações objetivas, dor. Nos aproximamos de imediato e, como ser humano, entendemos o luto. 

Leonard, como descobrimos também na introdução, trabalha em uma lavanderia, terminou o noivado e está depressivo. Não sabemos como, e o filme não se preocupa em explicar, mas ele desperta o interesse de uma mulher, filha do futuro sócio de seu pai. Momentos mais adiante, ele conhece outra moça, sua nova vizinha, por quem logo se interessa desesperadamente. Ela tem um amante, ele vira um amigo, conselheiro em sua teoria, um stalker em sua prática. 

Quer uma e tem a outra. Quer a loira e tem a morena. A loira, Leonard vê da janela entre grades, quase como um desejo proibido. A morena entrou em seu quarto e deitou em sua cama enquanto entrava em sua intimidade. 

Nesse caso, o diretor sabiamente cria uma narrativa sóbria para que o espectador não canse com o vai e vêm das mulheres. O drama real, no entanto, é a família. Filho de imigrantes, Gray sente o peso da família nas costas. Quase como se fosse uma autobiografia, ele faz o mesmo com Leonard, que tem as fotografias das gerações anteriores nos ombros, como se ele, o primogênito, tivesse o dever de seguir em frente com o nome da família judia. Infelizmente, quando não pensa em suicídio, o personagem pensa em quem não lhe deseja.

Está nas fotografias e no olhar choroso de Isabella Rossellini, sua mãe, o grande conflito do longa que se traveste de história de amor. A emoção está na troca de olhares enquadrados pelo filme, na expressão do personagem em seus momentos de ansiedade. Gray não tem vergonha de evidenciar um cinema de poesia que se assume como a fusão perfeita entre filme e personagem. É melancolia dentro e fora de Leonard, dor dentro e fora da tela. 

E, com o apoio das imagens, o filme enfatiza um olhar de dentro do personagem para seu universo, seu ponto de vista. Observe, por exemplo, seu encantamento diante dos prédios da cidade, enquanto pensa em uma, e nas cores frias de sua casa, enquanto pensa na outra. 

Imagem perfeita, como um momento-chave da projeção, é aquele em que ele transa com a filha do sócio de seu pai. Ela se prepara para sair de seu quarto, corta um plano para ela, corta um plano para ele. Só entram em um mesmo plano quando se beijam de despedida. As bocas mal se colam e já se afastam, sem um contato muito profundo. Ela sai e ele olha para o outro lado da porta, onde está a desejada, no outro lado do prédio. A câmera não mostra o seu ponto de vista. Na verdade, ela pontua Leonard observando, deixando claro subitamente o que ele quer. É elegância do mais respeitoso cinema que aplica a regra do “não fale, mostre”.

Essas imagens se transformam e conseguem ser ainda mais delicadas. A mãe observa o retorno do filho com amor, com olhar de quem se preocupa com fidelidade. Ele retribui pedindo mais uma chance, chorando, exigindo solidariedade. Como confirmação, ela segue o acompanhar do filho, mantendo o mesmo enquadramento, revelando a personagem filha do sócio, que o aguarda ansiosamente. É paz na terra de todos os lados. Menos para ele. E sabemos disso.

O que Gray faz é ainda mais arrepiante. Ao falar para Sandra, personagem pura e que representa honestidade nesse universo sofrido do diretor, que a ama e que está chorando por estar feliz, o espectador facilmente se irrita. O diretor, a partir disso, se afasta dos personagens, no intuito de não julgarmos de covarde ou pragmático em sua escolha de enganá-la. 

Amantes é um filme familiar. Já lemos, vivemos, assistimos essa história. A diferença é que os personagens precisam das imagens e de olhares para sobreviver. Quando estão em cena, eles existem e respiram sentimentos reveladores para todos. Isso é forte, é maior que o cinema. É o ser humano reagindo ao fogo pela primeira vez de dentro de uma caverna. Esse, talvez seja, em sua teoria, um dos motivos que qualificam o diretor como um dos melhores atualmente. 

Ele é um Cineasta. Faz imagens, conta histórias, cria dor.

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