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A Forma da Água (2018) | Um diálogo íntimo com o nosso interior

Imagem relacionadaOs contos de fada são umas das histórias mais antigas a serem contadas. Dos muitos romances que existem pelo mundo, a maioria segue a mesma estrutura deste gênero, diferenciados pela personalidade que ali é colocada. Conhecido por seus monstros e pelo estilo gore, Guillermo del Toro se aventura em criar um conto de fadas à sua maneira. A Forma da Água une um romance que encanta à originalidade de del Toro, carregando consigo um discurso que deve ser lembrado para além da temporada de premiações.

Logo no início da projeção não há hesitação em nos introduzir àquele universo de maneira fantasiosa. A breve narração de Richard Jenkins como contador de história e a direção de del Toro que passeia calmamente pelo cenário submerso acompanhados dos primeiros minutos da espetacular trilha sonora de Alexandre Desplat já definem a estética que o filme irá manter. A escolha certa a fim de conquistar o espectador de início.

O cuidado em apresentar a rotina de Elisa Desposito (Sally Hawkings) em uma sucessão de hábitos torna latente a intenção do filme nos fazer se aproximar da protagonista. A personagem se comunica através de seus gestos, sorrisos, olhares e costumes, sendo desenvolvida tão primorosamente sem que precise pronunciar uma única palavra. O brilhante desempenho de Sally Hawkings comove e, junto ao excelente texto também de del Toro e Vanessa Taylor, consegue transmitir tudo que Elisa sente. 

Mérito do roteiro por conseguir encontrar saídas que deem a entender a linguagem de sinais, fazendo o uso da legenda apenas em momentos pontuais. A Forma da Água se concentra muito em se utilizar de outros meios de se comunicar e manifestar seu posicionamento contra a intolerância de todos os tipos.

A metáfora do monstro (Doug Jones) é a personificação do diferente, enquanto as organizações militares o hostilizam, porque temem o que não conseguem compreender. Não à toa, os personagens que são marginalizados pela sociedade, Elisa, que é muda; Giles, que é gay; e Zelda (Octavia Spencer), que é uma mulher negra; criam empatia com a criatura, sem que esta precise falar nada. Todos que são também agredidos pelas intolerâncias de uma sociedade buscam unir forças prol da igualdade e da aceitação. Del Toro se prova um gênio ao fazer uso da fantasia apenas como premissa, afinal, A Forma da Água não poderia ser mais realista ao representar os “desajustados” aos olhos da sociedade.

A genialidade do mexicano não fica somente em seu texto. Sua direção é precisa, com movimentos singelos, atenuando a organicidade do filme, mesmo que se trate de uma fantasia. É indiscutível que del Toro amadureceu sua direção. O seu manuseio de câmera realiza enquadramentos que também desenvolvem os personagens. Por exemplo, a cena que Strickland (Michael Shannon) e General Hoyt (Nick Searcy) estão no topo das escadas em um contra-plongée (plano que filma de cima para baixo) ressaltando a imponência de ambos e, em um único movimento, coloca Elisa enquadrada em um plongée (plano que filma de baixo para cima), cuja vulnerabilidade é evidenciada perante a posição dos dois homens. 

Além da direção e do roteiro, a qualidade de A Forma da Água também se evidencia no bom uso dos recursos cinematográficos. A marcante fotografia de Dan Laustsen, com um excelente uso de iluminação em cenas com a presença da água, e o lindo trabalho de design de produção de Paul D. Austerberry ressaltam todos elementos que acrescentam à narrativa. A constante presença do tempo e da água, como duas unidades vinculadas, são colocadas de modo sutil. O tempo marcado pelo temporizador de cozinha; o ponto batido; o calendário, que carrega consigo uma frase que também ressalta essa associação são alguns exemplos. 

O filme, que trabalha com a sutileza de um romance, se distancia dos demais trabalhos de Guillermo. No entanto, o diretor encontra as melhores brechas para encaixar a violência sem que se destoe do contexto – vide os dedos necrosados do vilão, que mostram o jeito no qual este se recusa a se livrar do podre que existe em seu interior. E, claro, além da própria presença do monstro (com inspiração clara no clássico Monstro da Lagoa Negra), interpretado por seu companheiro de décadas Doug Jones, que se mostra muito à vontade por baixo de camadas de maquiagem e próteses. 

A Forma da Água consegue amarrar um romance ao estilo del Toro sem dificuldades. Em contrapartida, o que destoa do restante da obra é a maneira a qual se tenta homenagear o cinema. A intenção da metalinguagem é compreensível. O próprio filme é baseado nos antigos contos de fadas, o monstro é inspirado em um clássico de 1954 e Elisa é muda, fazendo referência ao cinema mudo. Contudo, a maneira utilizada para abordar isso acabou se tornando gratuito e em nada acrescenta à história – o que leva a pensar nas claras intenções do filme na busca de premiações. Inclusive, uma cena em específica lembra muito La La Land (vocês saberão quando a virem). 

Mesmo deixando de lado a abordagem do cinema, o desenvolvimento de A Forma da Água é equilibrado e objetivo. É um trabalho denso, mas que não realiza rodeios para dizer o que é preciso. Sua conclusão, porém, se torna vítima disto, acabando por ser uma solução muito redutiva a tudo que o filme representa. Um desfecho simples demais, por assim dizer. Mas a escolha de não arriscar em seu final é compreensível, ainda que alguns diálogos gratuitos existam na última sequência. Apesar de tudo, não deixa de ser bonito de se ver. Principalmente com a presença da maravilhosa trilha sonora de Desplat, que se configura como uma das mais fascinantes dentre os filmes na corrida ao Oscar. 

A Forma da Água é, sem dúvidas, encantador. A sua graça existe em todos elementos que constroem o filme. A magia, porém, é utilizar a delicadeza somada à fantasia para mostrar a cada um de nós que, por mais diferentes, estranhos ou desajustados que nos sintamos, nossa história pode ser um belo conto de fadas com direito a um final feliz. 

Crítica:  A Forma da Água (2018)

Um diálogo íntimo com o nosso interior

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