A maneira tradicional e mais funcional possível de se utilizar a chuva em uma filmagem é trata-la como um elemento técnico de imersão do ambiente. Estamos acostumados com filmes que abrem seus enredos em um dia chuvoso sem qualquer ambição por trás disso. A maneira não convencional de utilizá-la é transformá-la em um elemento narrativo, fazer com que conte história. “Mommy”, filme canadense de 2014, por mais que utilize consideravelmente esse elemento em apenas duas cenas específicas, tem muito a nos contar sobre isso.
Na trama, três personagens vivem em um futuro próximo, onde a lei permite que mães confinem seus filhos em manicômios públicos sem qualquer burocracia judicial. Die, personagem de Anne Dorval, retira seu filho do reformatório e tenta voltar a conviver com ele; para isso, consegue a ajuda voluntária de uma das vizinhas da rua.
A chuva de Dolan conta história, como se fosse uma narradora distante, uma observadora silenciosamente barulhenta, uma leal guardadora de memórias. Die e Kyra (vizinha), entre risadas e goles de uísque, conversam animadas. O tempo anuncia chuva, mas não damos muita atenção para isso; precisamos ouvir a conversa das duas. De repente, a câmera de Dolan as filma de fora da casa. Quando dá esse salto, o som da ventania que precede a tempestade toma espaço; ouvimos os trovões e o vento balançar as roupas no varal. A fotografia dá espaço ao azul mórbido da noite que está prestes a enfrentar a tempestade. No canto direito da imagem, podemos ver as mulheres conversando atrás da janela, enquanto o prelúdio da chuva consome o restante e nos lembra o que está acontecendo ali. As amigas estão enfrentando dificuldades, Die com seu filho rebelde e Kyra por seu problema de comunicação. Toda aquela felicidade trata-se de um resquício muito pequeno diante o que passam, diante suas preocupações. Naquele momento, podiam fechar os ouvidos para a chuva que vinha lá fora, assim como fazemos. Mas é preciso lembrar que ela existe.
O papel da chuva na segunda cena é mais audacioso. Kyra, Die e seu filho Steve decidem viajar. No meio do caminho, Die precisa ir ao banheiro e para o carro em um extenso estacionamento vago. Depois de alguns minutos, Die caminha de volta junto a alguns homens fardados. Steve os enxerga do carro tranquilo. Inesperadamente, uma chuva começa a cair tímida. As gotas deslizam lentamente sobre os vidros do carro. O som das gotas tocando a lataria soa descompassado. Steve finalmente compreende o que havia acontecido: sua mãe havia lhe enganado sobre a viagem e estava o levando de volta ao manicômio. Entre a tranquilidade de Steve e sua epifania sobre a infeliz realidade está a chuva, como se fosse um personagem secreto que chega no ouvido e sussurra, como se estivesse ali tanto para testemunhar o acontecimento, quando para denunciá-lo. A chuva nos transita entre um ambiente estável e um completamente avesso que deixa uma impressão angustiante sobre os rumos dos personagens e da história que nos conta.
Por muitas vezes, o cinema subestima seus elementos técnicos por simplesmente tê-los concebidos assim. Como arte, é preciso um artista que saiba subverter os conceitos existentes, que saiba ser criativo com a infinidade de elementos que pode ter acesso, assim como fez Xavier Dolan, a mente audaciosa de “Mommy”. A chuva pode nos lembrar infelicidade; Dolan une seus significados e a força nos contar uma história de paz, angústia e aflição.
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