O terceiro filme de Xavier Dolan é imenso. Impossível não começar por esse aspecto inquietante, foi a primeira coisa que me veio à cabeça depois da jornada de 168 minutos. A segunda foi que valeu a pena. Revisitando suas principais inquietações e acentuando as mais necessárias, “Laurence Anyways” é um estudo, embora cansativo, do que Dolan é capaz de construir. Que rapaz interessante.
O que move o “cinema indie”, do qual nasceu Dolan (por mais que, de imediato, tenha sido vangloriado em grandes festivais), é a linha tênue entre forma e conteúdo. Geralmente tratando questões íntimas, a despreocupação (maravilhosa) com formatos narrativos pode ser um caminho inteligente ao desprender suas obrigações para com os espectadores. Embora seja rico demais para estar nessa categoria, “Laurence” tem essa cara – um roteiro de transições simples que encontra sua principal consistência em outros aspectos.
Contando a história de um homem que deseja se tornar mulher, Dolan deixa de lado o processo lógico de transição – o que poderia lhe denunciar desleixo, fortifica seu objetivo. Em nenhum momento, Laurence hesita na compreensão de si. “Estive preso por 30 anos”. Não demora muito para que Laurence se assuma diante todos à sua volta, e, desde o primeiro momento, parece muito contente com isso. Mas o mundo se importa, e colocá-lo como um vilão “figurativo” é uma faceta curiosa. A reação da sociedade é capaz de lhe causar instabilidade profissional e parcialmente pessoal, mas Laurence rapidamente encontra suas soluções – seja de modo sincero, seja simplesmente guardando para si. Criando um paradoxo pertinente, já que Fred não tem o mundo contra si, e passa por mais transtornos; há uma mensagem de “amor” perdida nesse contexto.
As marcas de Dolan até se escondem, mas estão ali. A relação conturbada com a mãe, a histeria momentânea e, o que mais se repete, a constante oscilação brusca de reações. Nesse sentido, parece que o filme é mais sobre Fred e o modo como decide compreender (ou não) o processo de Laurence. O amor, o desentendimento, a compaixão e a solidão convivem em Fred, e Laurence só é citado nesse processo quando esse turbilhão precisa ser moldado.
A duração do filme é um aspecto questionável. Sua primeira hora é muito bem resolvida e encontra ramificações suficientes de envolvimento. Os minutos restantes tangenciam um desprendimento que, felizmente, jamais acontece de modo íntegro. Embora evidentemente esticado, Dolan encontra em todo esse tempo espaço para muito. Fazendo questão de evidenciar a passagem do tempo, datando o de forma precisa, o filme se determina como uma jornada. E aí mora sua pérola; não exclusivamente sobre Laurence, mas a jornada de um relacionamento simples que, da noite para o dia, vê-se complexo.
É claro que uma narração de quase três horas tende a falhar; há confusões e subtramas induzidas por um roteiro que é, ainda assim, orgânico em maior parte. Mas é uma centelha que se remonta ao decorrer do filme. Com 'Laurence Anyways' fica uma certeza muito feliz. A linguagem própria que Xavier Dolan vem tentando criar desde 'Eu Matei Minha Mãe' apresenta traços respeitáveis de maturidade – unindo aparências escancaradamente teatrais aos unicamente cinematográficos, Dolan consegue figurar a realidade em experiências foto-sonoras de tirar o fôlego. Essa unção constrói um modo não novo, mas único e expressivo. Esse é o seu primeiro grande filme.
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