Não é de hoje que se discute a posição da Netflix, principalmente porque se tornou em pouquíssimo tempo uma nova ferramenta de interação audiovisual. Nasceu como uma biblioteca virtual e cresceu enquanto ninguém se preocupava. Mas como o Google que há muito deixou de ser um site de pesquisas, a Netflix passou a pensar alto ao produzir suas próprias obras. A fricção imediata foi com os canais televisivos que não queriam classificar as séries da empresa como TV. E muito se pressionou por parte da indústria para que fosse ignorada. Mas não deu, a começar por grandes premiações de TV que passaram a colocar as obras no páreo. Logo depois, a briga comprada foi ainda maior: filmes originais Netflix. Enfrentou tanto o conservadorismo mundial em torno do cinema, quanto as grandes indústrias vigentes. Esse ano, a discussão ganhou mais um capítulo interessante. Ao concorrer à Palma de Ouro ao lado de "filmes de cinema", 'Okja', do bem recepcionado diretor sul-coreano Joon-Ho Bong, despertou novamente a intriga.
Não se esperava, por mais que se imaginasse, que Pedro Almodóvar declarasse, na posição de presidente do júri do Festival, seu não interesse em premiar filmes que não seriam vistos no cinema. A frase foi dita de modo pessoal, é claro, mas é estranho que já no início do evento seja exposta uma exclusão como essa. O que indica, inclusive, um atrito com o próprio festival. Se 'Okja' está concorrendo à cobiçada Palma de Ouro, é porque a curadoria o determina entre os 'iguais'. Na prática dessa discussão, testemunho um cenário visível. Grande parte dos filmes que concorrem em Cannes custam a alcançar grande parte dos países, sem citar os que sequer chegam; 'American Honey', de Andrea Arnold, veja que curioso, estreou no Brasil somente pela Netflix. O filme em questão, 'Okja', chegará em todo mundo no dia 28 de junho. De que outra forma, os filmes poderiam ter esse alcance em tão pouco tempo?
Mas é claro que essa discussão não é tão simples quanto possa parecer. O modo de se assistir filmes em casa/trabalho/carro/etc é completamente outro do quase retiro que é a sala de cinema em sua essência. Isso sem se aprofundar em uma questão ainda mais complexa que envolve mercado, indústrias e monopólio. Talvez o debate esteja em outra vertente, na possibilidade da Netflix poder coexistir também nas grandes telas. E essa é, na realidade, a grande polêmica. Pois ao não ceder distribuição nos cinemas franceses, a direção de Cannes não vai mais aceitar que isso aconteça em próximas edições do festival.
'Okja' é primeiramente sobre a manipulação corporativista diante uma espécie animal criada para a indústria alimentícia. A trama gira em torno de uma criança (Seo-Hyun Ahn) que, ao criar afeto com um dos animais, precisa protegê-lo desse processo. É tudo muito curioso, ainda mais ao ter alguém tão competente como Joon-Ho Bong na cabeça do projeto. E, de repente, tanto pelo ineditismo da Netflix estar pela primeira vez em uma competição tão cobiçada, como pela polêmica que se instalou em seguida, a imprensa se viu envolvida nisso tudo - essencialmente por precisar de uma posição.
Exibido ontem (19) no Festival de Cannes, o filme veio recebendo críticas em sua maioria elogiosas. Mas ainda há uma boa controvérsia a ser discutida. (Confira as críticas completas clicando no portal)
"Acima de tudo um filme pop, e para que se equilibre na modernidade, é necessário que se submeta a algumas regras: personagens que vivem no limite e obviedades nas reviravoltas. [...] “Okja” é excelente, “Up” e estende “novas aventuras”, até porque nossa luta nunca acaba."
"Uma história cotidiana de porcos gigantes, corporações gananciosas e movimentos de libertação de animais, Okja suavemente contorna o apocalíptico com o cômico e o sentimental. Você não vê essa loucura todo dia."
"Com ótimos efeitos especiais, especialmente na tradução de sentimentos através do olhar, Okja é capaz não só de entreter, mas também de desnudar e questionar uma realidade tão presente no mundo contemporâneo. [...] Excelente filme, para ver, se divertir e refletir."
"Especialmente com o seu final, sem originalidade, que, em seguida, fica a sensação de um trabalho impessoal altamente americanizado, no sentido de Hollywood - cenário padrão com reviravoltas previsíveis e uma forma suave, sem criatividade real."
"Okja é divertido, se por vezes sobre-instigado, como uma brincadeira de aventura, mas esperneia em exagero quando se trata de intenção satírica."
"Ele [Bong Joon-ho] executa com Okja um trabalho que se encaixa perfeitamente na continuidade temática de seu último filme, excelente 'Expresso do Amanhã', oferecendo novas dimensões, novas redes, novos personagens, novos subtextos do seu cinema."
"Há algo inspirado na forma como o diretor lida com o contraste entre o paraíso bucólico em que Mija e Okja cresceram juntos e a selva alienígena da cidade grande. A dinâmica narrativa é comparável ao King Kong em seu caminho [...]. As cenas no início onde Mija perde o equilíbrio e Okja instintivamente improvisa um resgate são tremendamente concebidas."
"Okja é também um modelo de direção de atores. Além de um jogo de física que seria recorrente no cinema coreano, há um trabalho enorme em interações e à parte do corpo. Este trabalho se reflete nas relações dos personagens com Okja. Essas escolhas dão-nos situações de grande intensidade e grande beleza. Pensamos em Spielberg ou Del Toro, mas também em 'The Host' quando o filme parece seguir a reflexão sobre a família, a sociedade e a vontade."
A melhor parte de toda essa expectativa é que este será o primeiro filme da competição oficial que veremos no Brasil. Claro, graças a Netflix.
Obs: Vale lembrar que outro filme em competição 'The Meyerowitz Stories', de Noah Baumbach, também terá distribuição mundial pela Netflix.
Comentários
Postar um comentário
Deixe sua opinião!