Daniel
Rezende, montador de grandes filmes nacionais, como Cidade de Deus e Tropa de Elite 1 e 2, dirige o seu primeiro filme, Bingo: O Rei das Manhãs, com muita
perspicácia e com características que flertam com a fantasia. A trama,
inspirada na vida de Arlindo Barreto,
apesar de baseada em fatos, se distancia de movimentos, como o Neorrealismo
Italiano, cujo foco era apresentar e desenvolver histórias, personagens e
situações reais, já que, mesmo com a vasta documentação provando a vida de
Arlindo, o que fica é a sensação de que tudo que está sendo visto é irreal.
Vladimir
Brichta interpreta Arlindo, o palhaço Bozo, que apresentou o famoso programa infantil nas manhãs do SBT na década de 1980. No texto do filme, o diretor alterou os nomes de
algumas emissoras e a marca do palhaço por questões judiciais. O nome de
Arlindo, no entanto, já marca o primeiro ponto de fantasia, visto que é
substituído por Augusto, assim como Bozo muda para Bingo. As alterações, em
vista disso, garantem uma liberdade para o diretor que, sendo muito criativo em
seu roteiro, nos mostra uma trama orgânica e natural.
O clichê, de certo modo, acaba surgindo com o desenvolver
dos atos. Em certos momentos, Rezende até brinca de ser Martin Scorsese, ainda em início de carreira, quando nos apresentou
Touro Indomável e O Rei da Comédia. As obras do diretor
fizeram escola, como pode ser apontado em Boogie
Nights – Prazer sem Limites de Paul
Thomas Anderson e, no Brasil, com Bingo, logo que os atos se concentram em
três estágios: ascensão, sucesso e queda.
O roteiro, por outro lado, se diferencia por causa da
cultura popular dos anos de 1980 no Brasil. A loucura do politicamente
incorreto, a picardia da chanchada e o descontrole da televisão brasileira
criaram grandes histórias, principalmente quando comparada com as últimas
gerações. As homenagens, citações e situações que o personagem se encontra
divertem o público que viveu e se sente em casa, assim como aqueles que têm
curiosidade de saber como era o período televisivo de anos atrás.
Já a montagem feita por Márcio Hashimoto, o mesmo de O
Filme da Minha Vida, garante uma viagem por essa história. Se na montagem de
Rezende o realismo prevalece, aqui, assim como no filme de Selton Mello, a fantasia se destaca. Todo o movimento que a câmera
faz recebe apoio de Márcio, que, com muita alegoria, acaba tornando o filme
carnavalesco. Este elogio, por sinal, não seria o mesmo sem o apoio da trilha
sonora, que traz um drama tocante e áspero nos momentos melancólicos, assim
como outras sequências agitadas com as músicas de Metrô e Titãs.
+ Crítica: O Filme da Minha Vida (2017) | Contemplando o passado
+ Crítica: O Filme da Minha Vida (2017) | Contemplando o passado
O design de produção, seguindo a linha, aposta no neon,
azul e em outras cores fortes que combinam com a década. Com o passar dos atos,
no entanto, a iluminação exibe tons obscuros, o que garante a fotografia de
Lula Carvalho alguns planos
arrebatadores, como aquele que Bingo anda por um corredor e as luzes se apagam
atrás dele. Destes takes que ficam na memória, vale lembrar dos longos planos
sequências que mostram os talentos das câmeras, da montagem, da fotografia e dos
astros.
Os atores, por sinal, acabam sendo mais um acerto.
Vladimir, por exemplo, é um camaleão. O ator encontrou o personagem de que será
lembrado, assim como aconteceu com Wagner
Moura e seu Capitão Nascimento. O desenvolvimento de Augusto até se tornar
o Bingo é um estudo profundo de personagem, que até nos segundos finais de
filme tem algo a mostrar. O mesmo pode ser dito pelo elenco de apoio, que
apresenta carisma, tensão e carinho, como as personagens das sempre talentosas Leandra Leal e Ana Lúcia Torres.
A personagem de Ana Lúcia, como outro trunfo do filme,
completa a viagem psicodélica da obra. Enquanto que em alguns momentos só
acompanhamos o seu lado profissional, o filme ainda encontra espaço para falar
do dilema entre ser um artista ou mãe/pai. Os temas tratados, além de drogas,
vícios, poder e disputa, se esvaem quando Ana e Vladimir contracenam juntos. O
último take, ainda que sejam os seus personagens, ao invés dos astros, emociona
e deixa um olhar muito sincero do que queremos ser. Todos os dias estamos
buscando reconhecimento, o que nos faz entrar em qualquer vício que afasta da
família, como no trabalho ou no prazer. Somos protagonistas e astros de nossa
própria história, mesmo que com bastante fantasia para dar uma temperada. E
Daniel Rezende nos mostrou isso com um palhaço. Gênio.
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