Marcelo Caetano evoca um personagem que não existe no protagonismo do cinema brasileiro contemporâneo. Elias é gay e nordestino, como explica didaticamente sua sinopse, mas ao invés de isso significar uma distinção do que conhecemos, como o Iremar de Boi Neon, esse personagem solidifica a consciência do que a realidade, de fato, representa. Coincidentemente, assim como a obra de Gabriel Mascaro, ‘Corpo Elétrico’ não se embola em conflitos previstos (inclusive flertando com isso na estrutura de seu roteiro). A trama de Caetano é “simplesmente” todos aqueles sonhos que permanecem guardados.
Mas o sonho de Elias talvez seja mais interativo que o de Iremar. Menos que o "ineditismo" de ser estilista no sertão, Elias quer se sentir vivo na cidade. Isso, porém, não encontra qualquer concretude, fazendo com que a obra se encontre nos curtos devaneios e anseios de seus personagens. Muitos desses pensamentos contornam a trama de uma urgência silenciosa, evocando a eletricidade calada desses corpos que querem sentir a vida e serem algo além do que socialmente são. O olhar cabisbaixo que Elias lança ao amigo, num mix de desejo e amparo, revela a angústia pulsante de um alguém que já enfrenta a vida com tanta maturidade apesar da juventude pouco aparente.
Kelner Macêdo evoca Elias como um "ícone" para o cinema brasileiro, um personagem enigmático que consegue ter uma vida pacata no país que mais mata LGBTs do mundo (1 a cada 25 horas). Não pela beleza, mas por sua confiança, é motivo de atenção por onde passa; dessas pessoas muito amigas que vivem "sozinhas". E mesmo que sutil, há nessa pequena lacuna um conflito sobre a solidão mecanizada, remetendo a distância da família à sua projeção de proximidade aos que surgem diante de si. Mas não é uma decisão ingênua.
Essa maturidade se torna irrelevante quando o sonho é “ser mais” do que sua definição urbana. Além de trabalhar duro, como o próprio anuncia, Elias é esse cidadão que sobrevive. O roteiro de Caetano ainda insiste em imagens comuns, como o relacionamento com o “sujeito rico”, inquietando sobretudo os personagens, desfazendo-se de qualquer discurso moralista. Mas como aos poucos revela, ‘Corpo Elétrico’ não exclusivamente sobre Elias, até porque não é um filme sobre o enfrentamento à sexualidade num estilo óbvio de “empoderamento”. É tudo muito orgânico para que se possa recortar bruscamente essa experiência.
“Que gay o caralho, eu sou um ser humano”, disse Ney Matogrosso em uma entrevista mal interpretada inclusive pelo brilhante Johnny Hooker, que se incomodou com a possível “negação da afirmação”. Mas o que Ney cansou de escutar em quase 50 anos de carreira é a classificação sexual como item de personalidade, e isso é tudo o que ‘Corpo Elétrico’ brilhantemente não se preocupa. O gay operário se torna um recorte social tão relevante quanto a funcionária que sente dor após anos de trabalho, o imigrante que manda dinheiro para a família ou a mulher que se preocupa com a hora que precisa acordar para chegar no trabalho após três horas extras. A cena da saída dos trabalhadores pelas ruas vazias é muito mais que a lembrança imediata de umas das primeiras imagens do cinema; é essencialmente a síntese dessa família de operários onde a identificação negra, homo e transexual, constroem um “mini-Brasil” de coexistência.
Crítica: Corpo Elétrico (2017)
O ser gay humano
Caetano registra esses sentimentos concretizando inclusive seu cenário, usando uma São Paulo que não é feita de caos (prédios altos, engarrafamentos, multidões, fumaça), como em ‘Obra’ do também estreante Gregorio Graziosi. Transforma-se em uma cidade de ambientes fechados e casas apertadas (demonstrando uma decupagem talentosa). E se isso tem algo a dizer sobre a vida limitada que levam, revela ainda mais como isso independe a compreensão de liberdade. Não existe ninguém ali que não esteja curtindo esses momentos de felicidade, essa arma quente que dispara rápida e não se segura por tanto tempo. As dúvidas e os medos moram no amanhã, e o hoje se torna sempre suficiente. “Corpo Elétrico” é sobre estar, mudar, ficar ou crescer. Ou seja, é sobre a vida.
Filme assistindo na Sessão Aceccine do 27º Cine Ceará
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