Miguel (Kiko Pissolato) é um policial de uma divisão especial do distrito federal que, ao perder a filha em uma fatalidade que é reflexo de múltiplos fatores negativos enraizados a nível nacional, questiona a forma de realizar seu trabalho dentro da polícia. Sedento por uma justiça banhada de vingança, Miguel, aos tropeços do destino, torna-se o Doutrinador, um anti-herói que almeja acabar com a corrupção brasileira com as próprias mãos.
Crítica: O Doutrinador (2018)
Um início otimista para filmes brasileiros de herói
A introdução surpreende aqueles que chegaram despretensiosos, criando um pico de expectativa alarmante. Para os amantes de anti-heróis sombrios, este momento torna-se ainda mais agradável. Pequenas sensações nos interligam com o protagonista rapidamente, olhamos em seus olhos saltados de indignação e podemos ouvir seus pensamentos. O que fica preso na cabeça dele, fica preso, por vezes, na nossa, em nossa rotina, é impossível fugir das desventuras diárias nos principais jornais brasileiros.
A sonoplastia e a trilha sonora andam juntas, marcham com as cenas como um caos organizado, em uma sinfonia belíssima. Quando não, as cenas apenas respiram uma trilha sonora agradável a cada momento proposto. Por vezes, a cena faz o ritmo da música, em outros casos a música que toca em algum local do ambiente, encaixa-se seja como uma luva na situação em questão, originando empolgantes momentos de “fan service”.
O roteiro é corrido, com dois tropeços que são perceptíveis, grosseiros, de difícil sutileza, mas que não estraga a narrativa proposta. Os personagens múltiplos dividem bem o tempo de câmera e as histórias cruzadas encaixam de forma como se o sistema de corrupção, que é o principal antagonista, fosse de fato um organismo vivo. Vale ressaltar aqui que os momentos dos tropeços do roteiro não são adaptados da HQ, uma vez que esses eventos no filme são construídos no presente e nas HQs são apenas lapsos de memórias do protagonista. O roteiro não é previsível como aparenta, desenvolvendo, inclusive, reviravoltas interessantes. No mais, são dois momentos extremamente icônicos e marcantes que deveriam ter tido mais tempo de tela e cuidado ao serem retratados, pois correspondem a gênese do anti-herói.
O nosso protagonista ainda como Miguel se apresenta bastante carregado, feições fortes, movimentos bruscos, sempre intenso. Esse comportamento pode ser estranho no começo, mas com o passar do filme não é tão difícil comprar o jeito rígido do protagonista (a postura militar ajuda bastante). O elenco completamente nacional veste a camisa da proposta do filme, a ambientação de uma fantasia de super-herói em cenário brasileiro encaixa-se perfeitamente, ressaltando os nossos valores, os nossos problemas, respirando nossa característica. Não é um filme ríspido americano abrasileirado; a proposta de herói é bem adaptada a nossa realidade. O futebol, as festas e comemorações do pão e circo andam lado a lado com a violência, não sabendo quando são balas perdidas ou fogos de artifício.
A poesia tem seu espaço; os elementos do filme, principalmente de fotografia, criam essa ambientação com uma ótima sugestão, sendo constante nos momentos de reflexão do personagem e nos saltos temporais da história. Essa poesia ocorre também nos momentos mais marcantes, na construção da situação e nos significados que as ações e os objetos representam ali, desde a primeira aparição do Doutrinador, a seus momentos mais icônicos, alguns desses manchados pelos dois tropeços no roteiro citados mais a cima.
A fotografia é um dos pontos mais extraordinários do filme, revezando entre uma postura neutra, sem muitas colorações extravagantes que sugere uma realidade brasileira constante e palpável. Quando não, mergulha para cores gritantes e saturadas de uma ambientação convidativa de conceitos das HQs. As cores encaixam nas mais sombrias possíveis, ressaltando o vermelho, o roxo e o verde em diversos momentos de inquietação do anti-herói que é moldado em eventos banais em nosso dia a dia. Essas cores significam, respectivamente, a violência, a morte e a inquietação/loucura, três características vitais na construção do personagem.
A violência física é um ponto que percorre toda a obra. O conteúdo tem um fator forte em todos os segmentos, de confrontos físicos até questões políticas presente e de importante análise. O filme em si não só vende um anti-herói, mas uma obra de arte que desmascara sistemas de corrupção ficcionais, mas que sabemos que em nossa conjuntura são reais. São mentirinhas com um grande fundo de verdade. Os efeitos especiais não são o forte do filme, sendo deixados para o final, quando muitos de nós já compramos os pontos positivos da obra, absorvemos suas mensagens, e perdoamos as dificuldades gráficas.
Por fim, o filme é uma obra que deve ser analisada com bastante cuidado. Vivemos uma conjuntura no Brasil de grandes tensões políticas que refletem em violência e polaridades ideológicas. É necessário um certo cuidado para que ele não se reflita negativamente no ponto de vista das pessoas e que não resulte em um tiro pela culatra como foi a interpretação de muitos da saga Tropa de Elite do José Padilha.
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