José Arcadio Buendía e o próprio García Márquez devem estar se remexendo direto de seus túmulos neste exato momento. A notícia de que os direitos do célebre livro "Cem anos de solidão", do autor ganhador do Nobel de Literatura Gabriel García Márquez, foram comprados pelo serviço de streaming Neflix foi uma surpresa - boa e ruim - que chegou em plena quarta-feira de cinzas, como um presente de fim de Carnaval.
Nunca antes adaptado para nenhuma tela - seja cinema ou televisão -, a história que encantou e ainda encanta gerações desde 1967 tem previsão para se tornar seriado com produção-executiva assinada pelos filhos do autor. Mas por que essa notícia é tão relevante? E por que essa obra, e não "Amor nos tempos do cólera", umas das favoritas pelo público?
Para começar, temos que entender o que significa "Cem anos de solidão".
Lá pela década de 1950, após os grandes movimentos de literatura da América Hispano-americana terem se consolidado como manifestações próprias - como a novela regionalista e até mesmo o vanguardismo, que supõe-se ser pioneiro -, já estava na hora das histórias latinas se internacionalizarem, conquistarem o mundo além do latino. Assim, o cubano Alejo Carpertier e seu "real maravilhoso americano", e o mexicano Juan Rulfo, com a obra "Pedro Páramo", foram uns dos primeiros a sair da "caixinha" e a tomar um passo que mudaria a história da literatura hispano-americana: ir em rumo ao famigerado realismo mágico.
O movimento já utilizado nas artes europeias ainda era novidade na literatura e a América hispânica, por tanto tempo subjugada às influências principalmente espanholas, tomou o primeiro passo e arriscou. Assim, em plenos anos 1960, aconteceu o conhecido "boom" da literatura hispano-americana.
Quatro obras então se destacaram: "A morte de Artmeio Cruz" (1962), do mexicano Carlos Fuentes, "Jogo da amarelinha" (1963), do argentino Júlio Cortázar, "A cidade e os cachorros" (1963), do peruano Mario Vargas Llosa e, finalmente, "Cem anos de solidão" (1967), do colombiano Gabriel García Márquez.
Parecia impossível. A coincidência de quatro autores latino americanos se sentarem e escreverem obras completas lançadas na mesma década parecia quase... Mágica. E foi com esses livros que a literatura hispano-americana realmente saiu da América, entrou no jogo de publicações e fez seu nome no mercado mundial. Se nós, como latinos, podemos publicar com mais facilidade - ainda assim, muito dificilmente - livros de forma mais internacional, devemos isso à esses quatro cavaleiros da literatura. Ou seja, temos muito a agradecer para esse jornalista colombiano, e não só pela história mais enigmática já escrita.
E Cem anos de Solidão não é uma novela qualquer, muito menos fala de cem anos de solidão. Com um território genuinamente colombiano - a fictícia "Macondo" -, e personagens com os mesmo nomes, a leitura se destaca pelo realismo mágico, a mistura de realidade e magia de forma quase natural e que se encaixa no pretexto da obra com excelência. Não são cem anos, mas é solidão. São os mesmo nomes, mas pessoas diferentes.
García Márquez morreu como santo e seus mandamentos ainda estão presentes - talvez mais do que nunca - no nosso dia-a-dia. E há quem diga que, junto a Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, o livro já conquistou o lugar de uma das obras mais importantes já escritas da literatura mundial. Até porque da literatura latina já temos certeza e não há como negar.
Mas não podemos nos enganar. Cem anos de solidão é uma leitura difícil, repleto de personagens com nomes iguais e basicamente impossível para leitores iniciantes e até intermediários. A história, por mais encantadora que seja, não é simples. Para ler sobre a história da família Buendía, é preciso coragem, tempo, dedicação e muita paciência.
Criar a série da Netflix é aumentar seu público, chamar a atenção de novos e futuros leitores e internacionalizar ainda mais uma trama que já merece o destaque. É democratizar a informação e a vida da família colombiana de Macondo. Então não é preciso dizer que os leitores de Cem anos de solidão estão preocupados com a decisão. Como transformar o realismo magico na tela? Como garantir um mínimo de fidelidade à obra?
Essa é a pergunta de um milhão de dólares, e o que mais surpreende quando vemos a notícia. Como transformar algo perfeitamente literário em uma obra-prima da televisão?
Bom, esse é o grande desafio da Netflix. Ainda bem que já temos "Roma" como referência.
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