Pular para o conteúdo principal

Harry Potter e o Enigma do Príncipe (2005) | O engenho de J. K. Rowling entre o amor e o terror

Imagem relacionadaProvavelmente pelo descontentamento que sinto pela nova franquia do universo Harry Potter, a fragilidade de Animais Fantásticos, fui tomado por uma vontade de reler os livros da saga original de J. K. Rowling - aproveitando, inclusive, para ler os que ainda não tinha lido embora estivessem há anos empoeirados na minha estante. A releitura acariciou minha incredulidade sobre os rumos cafonas adotados nos novo roteiros; eu precisava me recordar que ela realmente era uma grande escritora. E é fácil constatar essa percepção olhando para trás. Pelos motivos que escrevo abaixo, escolhi a sexta obra para dar início a essa jornada randômica.

Crítica: Harry Potter e o Enigma do Príncipe (2005)

O engenho de J. K. Rowling entre o amor e o terror


Lançado em 1997 no Reino Unido e em 2000 no Brasil, a história de Harry Potter cumpria os elementos da Jornada do Herói, e cativava imediatamente pela literatura simples e sincera sobre o desafio de provar a existência de um novo universo. J. K. apontou seu público-alvo, a declarar pela narrativa, e nunca tentou ser um J. R. R. Tolkien ou o que viria ser George R. R. Matin - afinal, essa história era sobre um garoto de 11 anos que se descobria bruxo, proporcionando uma perspectiva única para os jovens da mesma idade que poderiam escalar nos próprios sonhos. O “bruxo”, de repente, deixou de ser na cultura pop uma figura de terror e maldições para adotar toda a imaginação da magia. Harry parte da solidão para uma nova casa com amigos, ampliando esse salto da realidade para crianças do mundo todo.

Cinco anos mais tarde, o sexto capítulo da série, no entanto, pouco repetiria a narrativa simplificada e o universo deixaria de ser tão lúdico quanto a brilhante descoberta de Harry. Aquele já era o seu universo, e as coisas tinham se tornado pesadas demais nos últimos anos para que ele ainda enxergasse Hogwarts com toda maravilha. A morte de Cedrico e Sirius e o contato direto com Voldemort deixaram Harry em estado de alerta. A escrita de J. K. nesse contexto é o que expõe a engenhosidade narrativa, principalmente porque o crescimento intelectual de sua abordagem reflete tanto o amadurecimento de Harry ao entender sua realidade como a dos leitores que cresceram juntos - não acho que a literatura pop mundial tenha alguma experiência semelhante, e por isso me parece completamente injusto comparar a Senhor dos Anéis, por exemplo, que fez sucesso no mesmo período devido ao lançamento dos filmes.

É brilhante, por exemplo, que essa história tenha início no mundo real. A curiosa conversa entre o primeiro-ministro do Reino Unido, o ex-ministro Cornélio Fudge e o recém-empossado Rufus Scrimgeour trás uma perspectiva de alarme e descontrole total quanto a ameaça das trevas que agora também tem o mundo dos trouxas como alvo. Sem que Harry Potter apareça por dois capítulos, a história já se encorpa do horror que mais tarde iríamos descobrir no passado de Voldemort, na crueldade que encontrou para sua existência.

Um elemento que a autora elabora nos livros anteriores surge com uma precisão assustadora - ela, afinal, narra os sentimentos de Harry como se fosse a narradora secreta do filme Mais Estranho que a Ficção, e a compreensão de Harry vai se tornando mais parte do livro do que a história em si. J. K. está em Harry assim como Voldemort; três personagens que se confundem constantemente.

“O ponteiro menor do relógio chegou ao número doze e, neste exato momento, o lampião da rua apagou. Harry acordou como se a repentina escuridão fosse um despertador. Endireitou apressado os óculos e, descolando a bochecha da vidraça para, em seu lugar, encostar o nariz, apertou os olhos para enxergar a calçada. Um vulto alto com uma longa capa esvoaçante estava entrando pelo jardim” 

A descrição encontra um campo entre especulação, sentimento e exatidão que define sua escrita. Na cena acima, Harry esperava a chegada de Dumbledore que, como sempre, não havia lhe avisado da antecipação, e a ansiedade toma de conta de todos nós - principalmente porque o mistério em torno de sua chegada, evocando uma figura ainda mais enigmática do bruxo, e a abordagem vão se tornando estranhamente explícita.

Essa, inclusive, parece-me a história mais recheada de mistérios e por isso se assume tão logo uma narrativa de sugestões. No segundo capítulo, lemos Snape encontrando personagens das trevas, fazendo um pacto de sangue para proteger Draco, e J. K. narra isso com uma objetividade que desperta uma desconfiança inteligente. Afinal, ela sugere a partir de então e durante toda a obra exatamente o que vai acontecer (a morte de Dumbledore) e parece estranho que isso seja possível. Ela não esconde os bastidores desse acontecimento como esconde a identidade do Príncipe Mestiço, em essência, porque importa menos. Até quando está prestes à acontecer, parece impossível - mas, de repente, sem qualquer piedade e da forma mais direta possível, acontece. Dumbledore despenca da Torre da Astronomia - J. K. consegue inflamar com uma precisão absurda o mistério em torno de Snape, e o sexto livro funciona como o ápice desse curioso processo de "vilanização". Ela esconde o verdadeiro tom de “Severo, por favor”, ao mesmo tempo que expõe todo o plano diante do seu espectador que não desconfia que este seja exatamente o plano.

A morte de Alvo surge como um marco da década e impõe uma nova postura a Harry e a todo o universo. Agora é definitivo: o universo bruxo está completamente vulnerável. A sequência da descoberta das Horcruxes, a caverna, a torre, o príncipe, o enterro, é a virada da água pro vinho, é Harry Potter em sua essência de aventura, o start para o caminho final.

J. K. entende a importância de tudo que cria neste livro. O modo pouco previsível como invade as memórias de Tom Riddle, a excelente trama de inserção do Slughorn, é impressionante - inclusive por mesclar toda essa urgência com as insistências da paixão. A trama que tem início nas Gemialidades Weasley com a porção do amor rende as construções tão esperadas para se firmarem: Rony e Hermione, Harry e Gina. É uma história que consegue prever a breguice do amor enquanto o terror que cresce nas trevas se torna silenciosamente intimidante. Não à toa Voldemort sequer aparece na história, deixando em evidência o pavor que pode ser o capítulo seguinte.

J. K. Rowling, por fim, restaura a cada nova história sua intensa capacidade descritivo-narrativa, principalmente porque tem propriedade em torno de seus personagens e toda a história secreta que permanece num distante background do mundo mágico. Com o segredo intacto em torno de Snape, Alvo e Voldemort e até mesmo do passado sombrio de Hogwarts, guia em Enigma do Príncipe uma história que ainda consegue ser nova: a revelação dos horcruxes e a caverna, por exemplo, conseguem ser mais assustadoras que a representação no cinema, e toda a ação e descrição são méritos de sua abordagem - uma escrita enigmática que só parece verdadeiramente importante porque é acessível e inclui os jovens leitores da magia de Pedra Filosofal, para o mundo assustador que se estende a seguir.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Leonard Nimoy, eterno Spock, morre aos 83 anos

A magia que um personagem nos passa, quando sincera, é algo admirável. Principalmente quando o ator fica anos trabalhando com a mesma figura, cuidando com carinho e respeitando os fãs que tanto o amam também. E, assim foi Leonard Nimoy . O senhor Spock de Jornada nas Estrelas , que faleceu ontem (27/02) por causa de uma doença pulmonar, aos 83 anos. O ator, diretor, escritor, fotógrafo e músico deixou um legado imenso para nós. E isso é algo que ele sempre tratou com muita paixão: a arte. A arte de poder fazer mais arte. E com um primor de ser uma boa pessoa e querida por milhares. E por fim, a vida atrapalhou tal arte. Não o eternizou como o seu personagem. Mas apenas na vida, pois no coração e na memória de todos, o querido Nimoy vai permanecer perpétuo nessa jornada. Um adeus e um obrigado, senhor Leonard Nimoy, de Vulcano. Comece agora, sua nova vida longa e próspera, onde quer que esteja.

Mad Max (1979) | O cinema australiano servindo de influência

Para uma década em que blockbusters precisavam ter muitos efeitos visuais e grandes atros do momento, como em Alien - O Oitavo Passagéiro , Star Wars , Star Trek  etc, George Miller teve sorte e um roteiro preciso ao provar que pode se fazer filme com pouco dinheiro e com um elenco de loucos.   Mad Max , de 1979, filme australiano com uma pegada  exploitation,  western e de filmes B, mas que conseguiu ser a estrada para muitos filmes de ação de Hollywood atualmente.   Miller, dirigiu, escreveu e conseguiu com um orçamento de 400 mil filmar um dos mais rentáveis do planeta. O custo do filme foi curto e assim, tudo foi pensado no roteiro e nos diálogos que o filme ia exibir. Como os textos sobre o futuro, humanidade e seu fim, e o Max do título. O filme é rodado com o Mel Gibson sendo o centro. Seus diálogos curtos demonstram o homem da época, e com uma apologia ao homem do futuro. Uma pessoa deformada pelas perdas e com a vontade de ter aquilo que não pode ter, e que resulta no

O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos (2014) | Peter Jackson cumpre o que prometeu

    Não vamos negar que a trilogia O Hobbit possui grandes problemas. O que é uma pena, já que a trilogia anterior ( O Senhor dos Anéis ) não tem falha alguma. Contudo, o que tinha de errado em Uma Jornada Inesperada e Desolação de Smaug , o diretor Peter Jackson desfaz nessa última parte. O que é ótimo para os espectadores e crível para os adoradores da saga da terra-média de longa data.     O filme apresenta problemas diversos, por exemplo, um clímax logo na primeira cena (se é que você me entende) e um personagem que não consegue momento algum ser engraçado. Falhas como essas prejudicam o filme como todo. O roteiro, por ser o mais curto dos três, precisava de mais tempo em tela, e dessa forma, cenas e personagens sem carisma são usados repetidas vezes e com uma insistência sem ter porquês. Mas, em contra partida, O Hobbit e a Batalha dos Cinco Exércitos consegue ser mais direto, objetivo e simples que seus antecessores, que são longos e cheios de casos como citei. E o real mo