Provavelmente pelo descontentamento que sinto pela nova franquia do universo Harry Potter, a fragilidade de Animais Fantásticos, fui tomado por uma vontade de reler os livros da saga original de J. K. Rowling - aproveitando, inclusive, para ler os que ainda não tinha lido embora estivessem há anos empoeirados na minha estante. A releitura acariciou minha incredulidade sobre os rumos cafonas adotados nos novo roteiros; eu precisava me recordar que ela realmente era uma grande escritora. E é fácil constatar essa percepção olhando para trás. Pelos motivos que escrevo abaixo, escolhi a sexta obra para dar início a essa jornada randômica.
Lançado em 1997 no Reino Unido e em 2000 no Brasil, a história de Harry Potter cumpria os elementos da Jornada do Herói, e cativava imediatamente pela literatura simples e sincera sobre o desafio de provar a existência de um novo universo. J. K. apontou seu público-alvo, a declarar pela narrativa, e nunca tentou ser um J. R. R. Tolkien ou o que viria ser George R. R. Matin - afinal, essa história era sobre um garoto de 11 anos que se descobria bruxo, proporcionando uma perspectiva única para os jovens da mesma idade que poderiam escalar nos próprios sonhos. O “bruxo”, de repente, deixou de ser na cultura pop uma figura de terror e maldições para adotar toda a imaginação da magia. Harry parte da solidão para uma nova casa com amigos, ampliando esse salto da realidade para crianças do mundo todo.
Cinco anos mais tarde, o sexto capítulo da série, no entanto, pouco repetiria a narrativa simplificada e o universo deixaria de ser tão lúdico quanto a brilhante descoberta de Harry. Aquele já era o seu universo, e as coisas tinham se tornado pesadas demais nos últimos anos para que ele ainda enxergasse Hogwarts com toda maravilha. A morte de Cedrico e Sirius e o contato direto com Voldemort deixaram Harry em estado de alerta. A escrita de J. K. nesse contexto é o que expõe a engenhosidade narrativa, principalmente porque o crescimento intelectual de sua abordagem reflete tanto o amadurecimento de Harry ao entender sua realidade como a dos leitores que cresceram juntos - não acho que a literatura pop mundial tenha alguma experiência semelhante, e por isso me parece completamente injusto comparar a Senhor dos Anéis, por exemplo, que fez sucesso no mesmo período devido ao lançamento dos filmes.
É brilhante, por exemplo, que essa história tenha início no mundo real. A curiosa conversa entre o primeiro-ministro do Reino Unido, o ex-ministro Cornélio Fudge e o recém-empossado Rufus Scrimgeour trás uma perspectiva de alarme e descontrole total quanto a ameaça das trevas que agora também tem o mundo dos trouxas como alvo. Sem que Harry Potter apareça por dois capítulos, a história já se encorpa do horror que mais tarde iríamos descobrir no passado de Voldemort, na crueldade que encontrou para sua existência.
Um elemento que a autora elabora nos livros anteriores surge com uma precisão assustadora - ela, afinal, narra os sentimentos de Harry como se fosse a narradora secreta do filme Mais Estranho que a Ficção, e a compreensão de Harry vai se tornando mais parte do livro do que a história em si. J. K. está em Harry assim como Voldemort; três personagens que se confundem constantemente.
“O ponteiro menor do relógio chegou ao número doze e, neste exato momento, o lampião da rua apagou. Harry acordou como se a repentina escuridão fosse um despertador. Endireitou apressado os óculos e, descolando a bochecha da vidraça para, em seu lugar, encostar o nariz, apertou os olhos para enxergar a calçada. Um vulto alto com uma longa capa esvoaçante estava entrando pelo jardim”
A descrição encontra um campo entre especulação, sentimento e exatidão que define sua escrita. Na cena acima, Harry esperava a chegada de Dumbledore que, como sempre, não havia lhe avisado da antecipação, e a ansiedade toma de conta de todos nós - principalmente porque o mistério em torno de sua chegada, evocando uma figura ainda mais enigmática do bruxo, e a abordagem vão se tornando estranhamente explícita.
Essa, inclusive, parece-me a história mais recheada de mistérios e por isso se assume tão logo uma narrativa de sugestões. No segundo capítulo, lemos Snape encontrando personagens das trevas, fazendo um pacto de sangue para proteger Draco, e J. K. narra isso com uma objetividade que desperta uma desconfiança inteligente. Afinal, ela sugere a partir de então e durante toda a obra exatamente o que vai acontecer (a morte de Dumbledore) e parece estranho que isso seja possível. Ela não esconde os bastidores desse acontecimento como esconde a identidade do Príncipe Mestiço, em essência, porque importa menos. Até quando está prestes à acontecer, parece impossível - mas, de repente, sem qualquer piedade e da forma mais direta possível, acontece. Dumbledore despenca da Torre da Astronomia - J. K. consegue inflamar com uma precisão absurda o mistério em torno de Snape, e o sexto livro funciona como o ápice desse curioso processo de "vilanização". Ela esconde o verdadeiro tom de “Severo, por favor”, ao mesmo tempo que expõe todo o plano diante do seu espectador que não desconfia que este seja exatamente o plano.
A morte de Alvo surge como um marco da década e impõe uma nova postura a Harry e a todo o universo. Agora é definitivo: o universo bruxo está completamente vulnerável. A sequência da descoberta das Horcruxes, a caverna, a torre, o príncipe, o enterro, é a virada da água pro vinho, é Harry Potter em sua essência de aventura, o start para o caminho final.
J. K. entende a importância de tudo que cria neste livro. O modo pouco previsível como invade as memórias de Tom Riddle, a excelente trama de inserção do Slughorn, é impressionante - inclusive por mesclar toda essa urgência com as insistências da paixão. A trama que tem início nas Gemialidades Weasley com a porção do amor rende as construções tão esperadas para se firmarem: Rony e Hermione, Harry e Gina. É uma história que consegue prever a breguice do amor enquanto o terror que cresce nas trevas se torna silenciosamente intimidante. Não à toa Voldemort sequer aparece na história, deixando em evidência o pavor que pode ser o capítulo seguinte.
J. K. Rowling, por fim, restaura a cada nova história sua intensa capacidade descritivo-narrativa, principalmente porque tem propriedade em torno de seus personagens e toda a história secreta que permanece num distante background do mundo mágico. Com o segredo intacto em torno de Snape, Alvo e Voldemort e até mesmo do passado sombrio de Hogwarts, guia em Enigma do Príncipe uma história que ainda consegue ser nova: a revelação dos horcruxes e a caverna, por exemplo, conseguem ser mais assustadoras que a representação no cinema, e toda a ação e descrição são méritos de sua abordagem - uma escrita enigmática que só parece verdadeiramente importante porque é acessível e inclui os jovens leitores da magia de Pedra Filosofal, para o mundo assustador que se estende a seguir.
Crítica: Harry Potter e o Enigma do Príncipe (2005)
O engenho de J. K. Rowling entre o amor e o terror
Lançado em 1997 no Reino Unido e em 2000 no Brasil, a história de Harry Potter cumpria os elementos da Jornada do Herói, e cativava imediatamente pela literatura simples e sincera sobre o desafio de provar a existência de um novo universo. J. K. apontou seu público-alvo, a declarar pela narrativa, e nunca tentou ser um J. R. R. Tolkien ou o que viria ser George R. R. Matin - afinal, essa história era sobre um garoto de 11 anos que se descobria bruxo, proporcionando uma perspectiva única para os jovens da mesma idade que poderiam escalar nos próprios sonhos. O “bruxo”, de repente, deixou de ser na cultura pop uma figura de terror e maldições para adotar toda a imaginação da magia. Harry parte da solidão para uma nova casa com amigos, ampliando esse salto da realidade para crianças do mundo todo.
Cinco anos mais tarde, o sexto capítulo da série, no entanto, pouco repetiria a narrativa simplificada e o universo deixaria de ser tão lúdico quanto a brilhante descoberta de Harry. Aquele já era o seu universo, e as coisas tinham se tornado pesadas demais nos últimos anos para que ele ainda enxergasse Hogwarts com toda maravilha. A morte de Cedrico e Sirius e o contato direto com Voldemort deixaram Harry em estado de alerta. A escrita de J. K. nesse contexto é o que expõe a engenhosidade narrativa, principalmente porque o crescimento intelectual de sua abordagem reflete tanto o amadurecimento de Harry ao entender sua realidade como a dos leitores que cresceram juntos - não acho que a literatura pop mundial tenha alguma experiência semelhante, e por isso me parece completamente injusto comparar a Senhor dos Anéis, por exemplo, que fez sucesso no mesmo período devido ao lançamento dos filmes.
É brilhante, por exemplo, que essa história tenha início no mundo real. A curiosa conversa entre o primeiro-ministro do Reino Unido, o ex-ministro Cornélio Fudge e o recém-empossado Rufus Scrimgeour trás uma perspectiva de alarme e descontrole total quanto a ameaça das trevas que agora também tem o mundo dos trouxas como alvo. Sem que Harry Potter apareça por dois capítulos, a história já se encorpa do horror que mais tarde iríamos descobrir no passado de Voldemort, na crueldade que encontrou para sua existência.
Um elemento que a autora elabora nos livros anteriores surge com uma precisão assustadora - ela, afinal, narra os sentimentos de Harry como se fosse a narradora secreta do filme Mais Estranho que a Ficção, e a compreensão de Harry vai se tornando mais parte do livro do que a história em si. J. K. está em Harry assim como Voldemort; três personagens que se confundem constantemente.
“O ponteiro menor do relógio chegou ao número doze e, neste exato momento, o lampião da rua apagou. Harry acordou como se a repentina escuridão fosse um despertador. Endireitou apressado os óculos e, descolando a bochecha da vidraça para, em seu lugar, encostar o nariz, apertou os olhos para enxergar a calçada. Um vulto alto com uma longa capa esvoaçante estava entrando pelo jardim”
A descrição encontra um campo entre especulação, sentimento e exatidão que define sua escrita. Na cena acima, Harry esperava a chegada de Dumbledore que, como sempre, não havia lhe avisado da antecipação, e a ansiedade toma de conta de todos nós - principalmente porque o mistério em torno de sua chegada, evocando uma figura ainda mais enigmática do bruxo, e a abordagem vão se tornando estranhamente explícita.
Essa, inclusive, parece-me a história mais recheada de mistérios e por isso se assume tão logo uma narrativa de sugestões. No segundo capítulo, lemos Snape encontrando personagens das trevas, fazendo um pacto de sangue para proteger Draco, e J. K. narra isso com uma objetividade que desperta uma desconfiança inteligente. Afinal, ela sugere a partir de então e durante toda a obra exatamente o que vai acontecer (a morte de Dumbledore) e parece estranho que isso seja possível. Ela não esconde os bastidores desse acontecimento como esconde a identidade do Príncipe Mestiço, em essência, porque importa menos. Até quando está prestes à acontecer, parece impossível - mas, de repente, sem qualquer piedade e da forma mais direta possível, acontece. Dumbledore despenca da Torre da Astronomia - J. K. consegue inflamar com uma precisão absurda o mistério em torno de Snape, e o sexto livro funciona como o ápice desse curioso processo de "vilanização". Ela esconde o verdadeiro tom de “Severo, por favor”, ao mesmo tempo que expõe todo o plano diante do seu espectador que não desconfia que este seja exatamente o plano.
A morte de Alvo surge como um marco da década e impõe uma nova postura a Harry e a todo o universo. Agora é definitivo: o universo bruxo está completamente vulnerável. A sequência da descoberta das Horcruxes, a caverna, a torre, o príncipe, o enterro, é a virada da água pro vinho, é Harry Potter em sua essência de aventura, o start para o caminho final.
J. K. entende a importância de tudo que cria neste livro. O modo pouco previsível como invade as memórias de Tom Riddle, a excelente trama de inserção do Slughorn, é impressionante - inclusive por mesclar toda essa urgência com as insistências da paixão. A trama que tem início nas Gemialidades Weasley com a porção do amor rende as construções tão esperadas para se firmarem: Rony e Hermione, Harry e Gina. É uma história que consegue prever a breguice do amor enquanto o terror que cresce nas trevas se torna silenciosamente intimidante. Não à toa Voldemort sequer aparece na história, deixando em evidência o pavor que pode ser o capítulo seguinte.
J. K. Rowling, por fim, restaura a cada nova história sua intensa capacidade descritivo-narrativa, principalmente porque tem propriedade em torno de seus personagens e toda a história secreta que permanece num distante background do mundo mágico. Com o segredo intacto em torno de Snape, Alvo e Voldemort e até mesmo do passado sombrio de Hogwarts, guia em Enigma do Príncipe uma história que ainda consegue ser nova: a revelação dos horcruxes e a caverna, por exemplo, conseguem ser mais assustadoras que a representação no cinema, e toda a ação e descrição são méritos de sua abordagem - uma escrita enigmática que só parece verdadeiramente importante porque é acessível e inclui os jovens leitores da magia de Pedra Filosofal, para o mundo assustador que se estende a seguir.
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