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Era uma vez em... Hollywood: Vida sem utopia não entendo que exista

Em uma cena muito específica de Era uma vez em… Hollywood, Quentin Tarantino nos mostra um pequeno e significativo momento do passado de Cliff Booth, personagem vivido por Brad Pitt. Na sequência, conhecemos a sua esposa em um barco, deixando em aberto se Cliff realmente assassinou a mulher. A cena, logo de cara, deixa claro a referência ao caso nunca resolvido da atriz Natalie Wood, que ocorreu também em um barco, em 1981, na companhia de seu esposo, o também ator Robert Wagner, considerado suspeito até hoje. A causa da morte de Wood, que tinha 43 anos na época, foi marcada pelos relatos conflitantes de testemunhas.

Era uma vez em... Hollywood: Vida sem utopia não entendo que exista


  CRÍTICA 

Apesar da jornada não ser sobre isso, é inegável e perceptível o tesão do diretor em acenar para histórias obscuras e misteriosas da Era de Ouro do cinema norte-americano, recheado de figuras que mudaram o modo de se pensar cinema. Seu norte condutor, no caso, é Rick Dalton, ator de faroeste que se encontra em constante decadência em sua carreira, enquanto que o seu dublê vive uma aventura de incógnitas envolvendo a seita comandada por Charles Manson. Por último, como gancho desta última, temos Sharon Tate, atriz conhecidíssima por suas obras de comédia, de horror e por sua parceria com o diretor Roman Polanski, seu esposo na época. Tudo isso em 1969, quando a Família Manson proclamou o fim do movimento “paz e amor” com uma série de assassinatos pela cidade de Los Angeles.

Parecido em estrutura com Pulp Fiction: Tempo de Violência, Era uma vez em… Hollywood é um filme com coração imenso. Diferente de tudo que já tinha feito, Tarantino explora com nostalgia e ternura uma época do cinema de ouro que ficou na cabeça de todos apaixonados pela arte, até mesmo aqueles que nunca viveram o período, como o próprio diretor. Em 1969, com clássicos de Polanski, Steve McQueen, Bruce Lee e tantos outros, a liberdade prevalecia através das telas. Era amor pulsante em cada ator e diálogo do período. 

Não só no sexo e drogas, mas em todo contexto de contracultura que ainda estava se redescobrindo como futuro utópico. Ainda que cheio de falhas, o personagem de Pitt, por exemplo, surge como um xenofóbico que faz piadas com asiáticos, mesmo que seja um apaixonado por cinema oriental. O mesmo com Dalton, que através de suas angústias e medo do envelhecimento, acredita que todo ator passará pelo mesmo problema que ele quando ficar mais velho, como diz para uma atriz que divide cena. É uma obra, em essência, sobre amadurecimento e de se encontrar no mundo. A sacada da menina com o livrão e o personagem de Leonardo DiCaprio com o livrinho para descrever o potencial de cada um é a imersão necessária para a genialidade do diretor. 

Sharon, por outro lado, vivida docemente por Margot Robbie, é um anjo a ser observado. Não existe pecados nela. E até mesmo seus hábitos, consideravelmente "estranhos" para a época que a obra explora, são vistos sem nenhuma crítica negativa pelo roteirista ou personagens ao redor. Ela ronca enquanto dorme, usa um óculos estranho e coloca os pés sujos em cima da poltrona da frente no cinema. Mas não importa. O sentimento presente na personagem é desenvolvido com danças, risadas e com toques no cabelo que inspiram o público a uma paixão platônica repentina. Sharon era, de fato, perfeita, como dizem. 

Exatamente por isso tememos por ela mais que os outros. A violência, em algum momento, vai surgir.


E, como estamos falando de um filme de Tarantino, a comédia, inclusive aquela que se diverte com o gore, retorna aqui. A sequência do flashback dentro da cabeça de Booth, no caso, consegue encantar por sua competência técnica de cortar quando estamos prestes a ver aquilo que o diretor quer mostrar, mas não mostra. Ele nos deixa tensos e sabe como colocar todo mundo na ponta da poltrona justamente por causa do som e da fotografia que conseguem, em poucos minutos, tornar tudo melancólico o bastante para criar medo.

O mesmo sobre o terceiro ato do filme que, mesmo que possua alguns elementos de violência gratificante, não deixa de ser graficamente forte para quem não estava se preparando durante o filme. A vantagem, felizmente, é que o filme é dirigido por Tarantino. Apaixonado por cinema e eterno estudante da arte, o diretor sabe como trabalhar com os sentimentos do público, visto que ele nos diverte, cria o riso frouxo, emula uma emoção, flerta com o sentimentalismo. Por último, conhecido por seus finais catárticos, ele aplica o que entende de melhor: a nossa torcida por personagens específicos e que pouco se parecem conosco. E aí entra sua técnica e entendimento para montagem, trilha sonora e fotografia que, lado a lado, nos deixam apreensivos repetidamente.

O final, como exemplo, que acontece em um quarto escuro e com um rock ao fundo, consegue empolgar como se fosse uma partida de futebol, logo que somos colocados em cena com os personagens que lutam por sobrevivência. Não sabemos porque sentimos medo, mas quando aquele que tem nossa torcida leva uma facada na perna, sim, ficamos com vontade de violência. 

É cinema em sua essência. Manipulativo até o seu limite. 

Mas não só com a violência o diretor insiste em nos encantar. Todas as tramas de bastidores que ele explora é uma viagem muito mais intensa que qualquer La La Land lançado por aí, é muito mais musical, sonoro, visual. Como uma das várias referências que ele põe, por exemplo, uma das mais doces é aquela em que Bruce Lee treina Sharon Tate para as cenas de ação de A Arma Secreta de Matt Helm, que, apesar de gratuita, é linda, já que é mostrada pelo ponto de vista de Tate. Reza a lenda, inclusive, que teria sido o Polanski quem deu ao astro o célebre macacão amarelo, evocado por Tarantino como figurino de Uma Thurman em Kill Bill.

Além disso, como ocorreu em Os Oito Odiados, o diretor usa a narração em off e imagens aleatórias para reforçar a ideia de que existe um autor externo manipulando essas surpresas narrativas de brincar com realidade e fantasia. Não há dúvidas de que é uma declaração de amor pela Sétima Arte. Da justaposição da fantasia vendida pelo cinema e das falhas humanas omitidas pelas películas, Era Uma Vez em... Hollywood vai elaborando a sua narrativa com um desenvolvimento constante, como se os primeiros atos fossem, de fato, um livro. 

Essas camadas também surgem entre os personagens. A começar por Dalton, o galã dos faroestes e filmes de ação, em quem Tarantino busca o contraste entre o ideal masculino e as dores de um ator inseguro. Suas cenas dão vida em dois níveis para a missão metalinguística da obra. A participação de Dalton como o vilão de uma série de TV, por exemplo, é filmada para desfazer a imersão audiovisual e exige que DiCaprio abra seu personagem da mesma forma, uma vez que ele é, ao mesmo tempo, Rick Dalton, o ator frustrado, e Rick Dalton, o ator frustrado interpretando um vilão. É genial. 

Por fim, o diretor/roteirista/produtor constrói um dos melhores filmes de 2019. Com um olhar político que discute a essência da arte, os limites dos artistas e os sonhos entre grupos sociais que querem evoluir, o diretor diz que ninguém é todo bom e todo mau. Era uma vez em… Hollywood é o mundo que o diretor queria viver. Com toques de violência e onde a justiça, no fim das contas, prevalece. 

Otimista, errático, cômico e tenso, o longa é um lugar de paz que termina (ou deveria terminar) com “e eles viveram felizes para sempre”.

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