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Elefante (2003) | Digestão da crueldade

Uma das explicações dadas pelo diretor Gus Van Sant sobre o título “Elefante” está ligada a uma parábola budista onde um grupo de cegos busca definir um elefante sem nunca terem visto um na vida. Cada um em um canto do animal, os homens fazem descrições diferentes e não são capazes de ter uma compreensão geral do “objeto”. Tendo isso como principal alicerce de compreensão da própria obra, ‘Elefante’ é um desses cegos.

Lançado em 2003, quatro anos após o Massacre de Columbine em que os alunos Eric Harris e Dylan Klebold assassinaram 12 outros estudantes, o filme é um dos primeiros olhares de ficção sobre a tragédia. E por esse fato, atem-se a ser uma colcha de retalhos. Sem interesse em dissecar quaisquer motivações, e necessariamente por não esconder isso, um filme de difícil aceitação; não é tão simples imaginar sua responsabilidade.


É como se nem mesmo Gus Van Sant compreendesse a loucura e, por ter essa visão logicamente prematura, a história precisasse encontrar algo superficialmente consistente. Nesse sentido, resta de brilhantemente palpável o foco na não-consciência. Diferente de outros futuros estudos, livros e filmes, Gus não permite enxergar qualquer dor, aflição, medo ou angústia na personalidade de seus assassinos.

É evidente que não temos um estudo de personagem; imagine a complexidade necessária para se justificar. O livro ‘Precisamos Falar Sobre o Kevin' de Lionel Shriver (publicado em 2011 e adaptado para os cinemas em 2012 sob a direção da Lynne Ramsay), entretanto, já tem esse objetivo – para isso, constrói uma ficção mais elaborada e abertamente inventiva. 

‘Elefante’, porém, é também uma ficção, mas isso não significa que seu universo seja um destaque. Ninguém importa no filme de Gus Van Sant, seja os alunos que começarão a morrer nos últimos 15 minutos de filme, sejam os próprios assassinos. Não há ninguém reagindo com qualquer sentimento que possa se especular diante um massacre. É tudo muito frio e a atrocidade floresce. É surpreso que, com isso, a trama evoque a mesma sensação cruel de banalização.

A escola fictícia é um palco para essas projeções, para as inúmeras reflexões que só estavam começando a surgir mesmo quatro anos depois. Ninguém era capaz de compreender o elefante, tampouco parece ter conseguido até hoje. Mesmo que a história dos EUA esteja intricada de outros atentados em escolas, sempre parece que nunca o vimos, como os hindus confusos com o animal de pele áspera. 

Oferecendo uma digestão angustiante, o filme encontra espaço para uma edição que consegue ser esperta com a flexibilidade do tempo. Indo e voltando tendo como gancho personagens clichês e seus diálogos ainda mais genéricos, o objetivo ainda estica a entender essa juventude atrapalhada em convenções sociais desprezíveis. Com isso, Van Sant não ousa julgar diretamente esses comportamentos como justificativa para a tragédia, embora flerte com isso em uma única cena, quando Eric (Eric Deulen) pede para que o diretor escute mais seus alunos. 

‘Elefante’ é um filme de reflexão em sua consciência mais pura. Seco de som, de diálogos e de reação, um filme não somente cru, mas também cruel. Deixando de lado a violência megalomaníaca, o roteiro não transforma o evento em uma narração clássica. ‘Elefante’ não é um filme jornalístico e não tem o menor interesse em ser midiático. O sentimento final é de inexpressividade, mas principalmente de medo. Tudo sem humanos na tela, e isso é absurdamente chocante.


Crítica: Elefante (2003)

Digestão da crueldade 

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