Atenção: Esse texto possui spoilers de 'Precisamos Falar Sobre o Kevin' (2012)
Motivado pela seleção do novo filme de Lynne Ramsay na competição do 70º Festival de Cannes, decidi rever seu segundo e famoso filme ‘Precisamos Falar Sobre Kevin’. Dessa vez mais atento aos elementos que constroem seu suspense/triller psicológico, terminei o filme com uma aflição pulsante. O modo como constrói esse sentimento, inclusive, é o que talvez exista de mais consistente na direção de Ramsay. Impulsivamente envolvido com o tema-gatilho de inspiração de seus protagonistas, duas horas depois estava com mais de dez abas abertas sobre o Massacre que ocorreu na Escola de Columbine em 1999. Entre vídeos, notícias e artigos, entrei aflito em uma história que sabia superficialmente. Essa união direta me fez repensar de modo suspeito os alicerces dessa ficção e, em busca de respostas, encontrei ainda mais perguntas.
Eric Harris e Dylan Klebold |
Por ser recorrente em sua “história moderna”, as tragédias em escolas norte-americanas se tornaram um tema de discussão cultural. Um país que insiste em não revisar sua política de porte de arma (muito menos agora) parece não enxergar que, por inúmeras outras razões, é o um dos culpados por grandes paranoias sociais. Para além dessa discussão, o atentado chocante de Columbine traz como protagonista (Eric Harris e Dylan Klebold) um vilão usual: Secretamente perturbado, socialmente disfarçado, simpatizante de Adolf Hitler e revoltado com o sistema mundial capitalista ao ponto de afirmar em relato pessoal que acredita ter o direito de roubar o que quisesse. Mas o que há debaixo desse personagem?
Partindo dessa pergunta que engloba a maioria dos protagonistas de tragédias como essa, o filme de Ramsay (baseado no livro Lionel Shriver) cria um estudo de muitas incitações. E, diferente de brilhantes filmes como ‘Elefante’ de Gus Van Sant ou ‘A Onda’, de Dennis Gansel, ‘Precisamos Falar Sobre Kevin’ é sobre a mãe e o assassino responsável por gerar. E esse é o ponto mais desconcertante do objetivo da obra, essencialmente por tocar em assuntos imediatamente mal vistos como as dificuldades de “ser mãe”. Apoiada pelo roteiro contido, Tilda Swinton (Eva) não constrói uma personagem de fácil acesso. Mesmo que no início pareça existir um interesse em culpabilizar sua abordagem, logo se descobre que o caminho é mais confuso.
No alemão "A Onda" (1998), um experimento de simulação fascista em uma escola traz consequências assustadoras |
Construindo um primeiro ato que tenta se afastar do didatismo, a trama assume um formato instável. Nesse ponto, a montagem tem maior influência ao emaranhar o fluxo de pensamento de Eva. Dona do ponto de vista, memórias ressurgem no presente sempre induzidas por ganchos visuais e aí mora o suspense, elaborado com o cuidado de não esgotar atenção. Fato que incomodou os mais minimalistas, o vermelho se torna personagem usual e as recorrentes metáforas martelam uma mensagem já entregue. Mas esse interesse visual ultrapassa a necessidade de denunciar o sangue, já que se compreende desde o início que alguma atrocidade fora cometida. A constante presença dessa cor faz lembrar que nada jamais esteve bem, não houve um momento sequer de felicidade (raros momentos são logo sucumbidos). Diferente dos personagens reais, a mãe do assassino não é enganada por um comportamento social (figura vista no pai). Ela está ali sofrendo quase que igualmente por ser mais “racional” que a loucura do filho. É uma sensação indigesta.
Parte desse sentimento está na construção de Kevin. Desde o primeiro momento em que surge consciente, recusando jogar a bola para a mãe Eva, é perceptível que há uma situação problemática. Quando seu pai chega e sua feição muda num estalo, sentimos desde cedo que isso não é real. É como se Kevin não vivesse nada; com a mãe só transpassa um ódio incomunicável e, para alimentar essa tensão que aparenta lhe valer de algum modo, falseia a felicidade com o pai. E, mesmo assim, não significa que do outro lado desse antagonismo temos Eva. O interesse psicológico da obra posiciona seus personagens em um ring onde não é fácil entender se estão na mesma categoria de peso. Essa ambiguidade sobre o autor da culpa, mesma inquietação pela qual Eva passa, expande o envolvimento. Tudo parece errado.
Parte por uma decisão narrativa que permite uma “surpresa” final, mas sobretudo por um compromisso com a abordagem, pouco importa para o filme nos mostrar Kevin no colégio ou em qualquer outro lugar. Estamos na percepção de Eva e isso rende questionamentos perturbadores. Seu abraço final em um Kevin prestes a desmoronar acusa um reconhecimento de culpa?
Ramsay não deixou essas perguntas por estilismo (é curioso como o filme consegue ser cruel com um aspecto autoral modesto), elas precisam ficar sem respostas. Depois me aprofundando nas tragédias reais, fiquei me questionando o que esse filme pretende dizer. Em que momentos eles falam sobre o Kevin? Em nenhum. Não se cogita qualquer problema psicológico, ninguém senta para discutir o que está acontecendo. Por que Eva não procura, de fato, ajuda especializada? Por se sentir culpada e, por isso, acreditar que pode reverter a situação ou quem sabe simplesmente conviver com ela?
Kevin não é somente o adolescente fictício que matou estudantes com flechas, presente do pai que também se tornou vítima. Kevin é também Eric e Dylan (1999), Jeffrey Weise (2005), Seung-Hui Cho (2007), One L. Goh (2012), Adam Lanza (2013) e tantos outros. Ao estimular esses pensamentos perturbadores, o filme é um recado muito claro: precisamos falar sobre todos eles. Assim como no filme, esses casos devem ser pensados minuciosamente por uma sociedade que não enxerga os próprios conflitos?
Uma última sequência de perguntas sem respostas surge com uma agonia avassaladora: estamos preparados para nos culpar por Kevin? Vamos “somente” enxerga-lo como único responsável? Alguém pode nos tranquilizar quanto a ideia de que, se culpa somente sua, Kevin sempre existirá e não há nada que possa ser feito? Não sei o que Donald Trump (que inclusive é citado no filme) ou Jair Bolsonaro acham disso, defensores do porte de armas em discursos “cômicos”. Um deles no Timão da maior ameaça bélica mundial, outro na espreita de uma democracia doente em um país sedento por solução. Não sei se enxergam na omissão ou a na incitação pública alguma culpa. Não posso falar por eles, mas me parece que Kevin é também culpa de quem o fortalece.
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