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Joaquim: a revolta como consequência gradual

Obs: o texto contém spoilers de 'Joaquim' (2017), de Marcelo Gomes

Marcelo Gomes narra nos últimos minutos de ‘Joaquim’ o atual momento de revoltas políticas que vive o Brasil de hoje. Joaquim (Tiradentes) convoca algumas poucas pessoas para aderirem a uma possível revolução contra a coroa portuguesa, atentando ao quão longe da liberdade estão diante um Estado que só tem planos exploratórios. Alguns desses que o ouvem dizem estarem satisfeitos com a vida que levam, e que nada têm a ver com a opressão sofrida por outros. O filme, bem observa Marcelo, não foi feito para a atual conjuntura do país, não teve esse papel em sua concepção. Mas a razão por espelhar todo esse movimento atual é ainda mais danosa à nossa sanidade histórica: não mudamos tanto assim.

+ Crítica: Joaquim (2017) | O nascimento de um herói 

‘Aquarius’, de Kleber Mendonça Filho, tem uma heroína (Clara) que coexiste com as contradições suficientes ao discurso. Financeiramente farta e emocionalmente tranquila, tem a paz perturbada pela invasão corporativista de insensibilidade ameaçadora. É o que se chamaria nas problematizações imediatas de “White Problem”, no sentido de que além do afeto e da memória, Clara teria sua vida garantida se vendesse o apartamento. Como o Karl de 'Up: Altas Aventuras' que precisa manter a casa pelo que ela representa além do material. Ambos os filmes reconhecem que isso não são “problemas sociais”, apesar de ter como vilão um dos maiores símbolos do capitalismo que, conhecemos essa história, servem à discrepância de riquezas. Se a história fosse sobre uma corporação que precisa expulsar sem-tetos que 'residem' próximo ao novo empreendimento (semelhante a coerção que viveu a Hungria há poucos anos), já seria outra história e essencialmente integrada a discussão de alicerces sociais do poder. 

“Joaquim” está entre essas duas circunstâncias. Para construir isso, o grandioso Tiradentes que vimos nos livros de histórias não o é durante quase todo o enredo. Funcionário da própria coroa que viria se revoltar, Joaquim é um cidadão do século XVIII que também vive entre as pendências e anseios do poder. Sua jornada no filme é justamente motivada por essa provocação de ascensão, ser capaz de estar do outro lado da ordem. Há muitas limitações na sua vida e é óbvio projetar essa liberdade dentro da hierarquia que respeita e faz parte. É essa a ilusão que viria a se desmanchar com o tempo, somente quando precisa refletir seu sofrimento mediante uma jornada que sequer faz sentido.

Joaquim vive em um “conforto” questionável; não desfruta da riqueza de Clara, e sequer é o pobre sem teto (ou sem projeção de futuro). Se não fosse a série de decepções que enfrenta no filme de Marcelo, talvez jamais questionasse tudo aquilo. Nem Clara nem Karl precisam sentir essa fragilidade específica para que sejam capazes de se revoltar; principalmente porque seus problemas não dizem respeito a esse sentimento, não se sentem usados e traídos por esse amigo-vilão invisível. O ataque ideológico de Joaquim não é desperto por um grande acontecimento, mas por provações que o atentam ao que parece óbvio: a única coisa que a Coroa sabe fazer é extorquir, abusar-se do poder reverenciado por quem cede essas riquezas. Surge a raiva, e é preciso se revoltar pra valer, sem se contentar com a esperança do momento certo.

É preciso gritar como uma expressão cansado, inconformada. Mesmo que na esquina exista alguém que se julga não ser atingido pelas demandas de contestação, e por isso invalide a ira que pulsa aos olhos. O único sistema que permite esse posicionamento é o capitalismo em sua essência ideológica; os blindados das grandes revoltas possuem essa antipatia social também como objeto de distanciamento das classes: “Isso não é problema meu”. Basta ver hoje quem são os que ainda defendem o período da ditadura militar brasileira.

Marcelo Gomes, roteirista e diretor do filme’, deixa claro que seu filme foi pensado desde o início como uma crônica sugestiva sobre o amadurecimento dessa consciência política capaz de liderar uma insurreição nas proporções que se sucederam. E esse sentimento “cronista” é acentuado pela câmera sempre nervosa que invade esses ambientes do século XVIII com as nuances sombrias de uma vivência tão precária. Essa realidade, distante das representações engessadas que produtos televisivos costumam evocar, é o que faz pulsar a energia de revolta. É como se seus ambientes fossem trazidos cada vez mais perto, afim de transpassar a tela do cinema – e por atentar ao fato de estarmos vivendo um momento semelhante, é exatamente esse o resultado.

“Este não é um filme sobre a Inconfidência Mineira. E também não é um filme sobre o Tiradentes”, declarou Marcelo. Esta mensagem ganha uma força elegante ao passo que o filme se caminha para o conflito de compreensão da liberdade: Joaquim não é um herói na síntese perfeita de Jesus Cristo, mas um cidadão contraditório que se vê na iminência de um ato heroico – E se isso não for uma mensagem direta ao empoderamento dessas lutas atuais, não teria ideia do que mais poderia ser. 

“Joaquim” é tudo e só isso: um comovente gancho para revolução.

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