Na última semana de 2017, corri para assistir os filmes brasileiros que acabei perdendo por diversas situações, e um deles foi "No Intenso Agora", de João Moreira Salles. Apesar de ficar desconfiado do recorte feito em torno de três "eventos" na década de 60 (quando evidentemente só um parece importar), o filme me deixou algumas marcas. A história do meio resgata um assunto que inclusive retornou a Cannes esse ano com o Formidável, ficção de Michel Hazanavicius com Louis Garrel: as confusões de maio em 1968 na França, com foco no movimento estudantil que deixou marcas em toda a nossa história posterior.
Mas a abordagem de João Moreira Sales é quase inteiramente técnica ao resgatar imagens de arquivos para contar uma história tão conturbada de motivação. A câmera que rotineiramente filmaria um documentário se divide em várias anônimas, e não sabemos quem foi responsável por registrar tudo aquilo. Podemos sugerir, no entanto, que essas pessoas que filmaram reuniões internas da revolta, discussões na rua, sequências de violência e até mesmo enterros, não imaginavam que um dia estariam num filme brasileiro que "autocontemporaniza" os fatos.
A primeira imagem do filme é o que há de mais potente (e vagamente frustrante por nunca retornar como assunto) nesse ponto de vista. Um alguém filma os primeiros passos de uma criança branca nas ruas de São Paulo nos meados de 60, enquanto ao fundo a empregada negra se esconde do vídeo e posteriormente da foto em família que ela jamais pertenceu. João reforça que o autor dessa imagem não imaginou, nesse momento, que estaria registrando um conflito racial de classe que tanto domou a convivência social no país. Em seguida, diz que na maioria das vezes, a gente não sabe o que filma.
Isso me lembrou imediatamente (e não consegui tirar da cabeça durante as mais de duas horas do filme) um texto ou citação que li em algum blog ou publicação: discutimos há um bom tempo que todo documentário se torna ficção, mas deixamos para depois que a ficção é o mais fiel dos documentários, pois é um olhar sobre a relação de atores com a câmera em um determinado tempo de sua história - é o mais real porque não ser real (atuação) é a permissão. Fiquei pensando nessa ideia por dias, lembrando como essa disposição (atores-câmera) se modificou com o tempo. Quando o cinema ainda era um brinquedo, a linguagem imitou o teatro, e todos os filmes feitos à época são esse documento que registra essa relação diretamente ligada ao tempo. Godard falou algo semelhante na década de 50: "Todos os grandes filmes de ficção tendem ao documentário, como todos os grandes documentários tendem à ficção"
Minha emoção ao ouvir João dizer isso me levou distante. Muito antes de cogitar escrever sobre cinema, ganhei uma câmera digital e resolvi fazer meu primeiro filme com uns 13/14 anos. Era a história de uma menina que ficava presa dentro do próprio sonho - eu possivelmente estava embriagado de A Origem. O cenário do filme foi a casa da minha avó e, por querer abusar dos cortes e movimentos de câmera, fiz a protagonista invadir todos os espaços possíveis da casa num roteiro mais prolixo impossível. Anos mais tarde, o responsável pela negociação do aluguel pediu a casa de volta e eu a vi sumir da noite para o dia. Ao rever o filme, após a fala do João, me emocionei ao perceber que meu filme tosco ao seu modo é um documento que registra a história da minha infância naquela casa. Eu, definitivamente, não sabia o que estava filmando.
Esses dias participei de uma conversa que discutia quais filmes ficariam para a posteridade e quais seriam esquecidos, mas logo percebemos que é tolice falar sobre isso com um caráter para além da consciente suposição. O roteirista não tem controle sobre como a história registra seu tempo (como a loucura do Nascimento de uma Nação, por exemplo), sequer sobre a recepção de um público que tampouco domina a digestão. Ou seja, o cineasta não sabe o que filma, o espectador não sabe o que assiste.
Assim como arqueólogos estudam sociedades antigas diante seus vestígios, o cinema é essa arma que carrega todas as relações sociais, psicológicas, econômicas, e filosóficas da própria existência de seu povo. A gente amadurece, enterra antigos tabus, constrói outros, passamos por guerras, crises, momentos de esperança. E tudo isso está lá na tela do cinema, da TV, do celular, em todos os espaços possíveis, nos piores dos filmes, nos mais comerciais ou independentes. A gente que já esteve na mulher marginalizada em Central do Brasil, também estamos na mulher rica de Aquarius, e estaremos até mesmo nos filmes esquecidos.
Sem que tivesse a intenção pura, penso no quanto o cinema registrou da nossa relação com a representação durante 120 anos, a modificação e extrema popularização de uma arte que nasceu dos negócios. Por quantos anos ainda existir (e deve morrer com a humanidade), o cinema vai impressionar milhares de gerações futuras que vão denunciar o que, nesse agora, sequer imaginávamos ter testemunhado.
Mas deixemos isso para que nos digam se houver tempo.
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