O cinema brasileiro viveu momentos de terror em sua história, períodos de ameaça explícita ou modesta, afetando de todo modo sua imposição diante a ampla participação do produto estrangeiro. Na década de 30, um acordo feito entre o governo brasileiro e os EUA previa a importação sem taxas de filmes norte-americanos, e essa relação entre estratégias políticas e a cultura nacional viveu maior parte em conflito. A ameaça concreta mais recente veio com a eleição de Fernando Collor, em 1989, tão próximo da redemocratização do país. Com a promessa de causar uma reforma no Brasil, deu fim às principais ferramentas de incentivo governamental à cultura entregando ao setor um longo período de apagão. Nos anos seguintes, os mesmos “progressistas” que comemoraram a atitude seriam vítimas de um episódio de confisco das poupanças bancárias inédita em nossa história.
Mas voltamos. Após a sombria era Collor, o chamado “Cinema da Retomada” deu conta da ascensão, e a nossa identidade cultural já não era a mesma dos grandes estúdios de cinema ou ligados a TV. Fomos descobrindo um cinema ainda mais plural, e é visível que esse processo continue até hoje. Por falar em hoje, não é de se assustar que os artistas brasileiros estejam receosos que toda essa história possa se repetir com Jair Bolsonaro, presidente eleito no último domingo, 28, com quase 58 milhões de votos. A democracia pode trazer algumas verdades duras, como o fato de o Brasil ter legitimado um projeto bélico-religioso como a salvação do país.
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Essa ameaça, porém, não é bem uma novidade. Em 2016, quando Michel Temer assumiu a presidência após o impeachment de Dilma Rousseff, tratou de excluir o Ministério da Cultura. Com a revolta da classe artística e da repercussão internacional, porém, a decisão não durou muito. O ministério vem se mantendo de pé apesar dos trancos, e até teve um líder sem caráter golpista, o diplomata Marcelo Calero, que também não durou muito tempo; pediu demissão após se pressionado por outro ministro de Temer em um processo criminoso. O ministério completamente imaturo chegou ao ponto de, hoje, ter a frente Sérgio Sá Leitão, jornalista que incentivou recentemente que o TSE investigasse o ex-Pink Floyd Roger Waters por ter enxergado num manifesto contra o fascismo, uma campanha eleitoral. O mesmo ministro que parabenizou a vitória do presidente que irá excluir o ministério do qual é chefe.
Depois dessa trajetória, chegamos a Bolsonaro. A expectativa é que o deputado federal pretenda ser um entremeio de Collor e Temer com uma pitada de autoritarismo. Declarou que irá eliminar o Ministério da Cultura e reduzir a pauta a uma pasta ministerial. O plano de governo com que Bolsonaro foi eleito sequer cita a cultura e sua equipe tampouco se pronuncia sobre. Se para Paulo Guedes, futuro ministro da economia, nem o bloco Mercosul é prioridade, porque podemos pensar que a cultura será num governo que carregou como principal muleta eleitoral o armamento social? Dayane Pimentel, presidente do PSL na Bahia, disse numa entrevista publicada ontem, 30, que o presidente irá fiscalizar a agenda cultural e intelectual do estado. É um monitoramento que nos lembra outra página infeliz da nossa história.
Mas apesar de toda ameaça, há esperança em torno da resistência de uma nova safra de artistas. Cineastas, músicos, bailarinos, teatrólogos, e uma penca de pensadores de uma arte que vem se tornando cada vez mais política - não aos moldes do Cinema Novo, porém ainda mais assertiva pela pluralização do acesso democrático. Mas entendemos que a arte, em sua essência, é como a Força Estranha de Caetano Veloso, é um ímpeto, uma expressão imediata, é naturalmente resistência. Por essa perspectiva, é justamente num período de crise que tem mais potencial para aflorar ideologicamente. Glauber Rocha, o pai do cinema brasileiro como revolta, deu uma declaração em pleno regime militar brasileiro que muito parece ter a ver com os dias de hoje: “A ditadura nunca foi desculpa para não fazer cinema”.
É em torno dessa resistência que vive a esperança do título deste editorial. A frase é retirada de O Bêbado e a Equilibrista, uma das mais brilhantes músicas em referência às barbaridades da ditadura. Composta por Aldir Blanc e João Bosco, conhecida na interpretação emergencial de Elis Regina, a canção faz uma trajetória da cultura que atravessou um dos tempos mais obscuros de nossa liberdade, e resistiu como uma equilibrista. Mesmo sabendo que poderia cair, machucar-se, ou até mesmo deixar de existir, o show continuou até à reverência seguida de palmas da platéia.
Esperamos que essa história não se repita, que o projeto de privatizações, os acordos com Donald Trump, a hiper vigilância na educação brasileira, e uma série de outras diretrizes, não iniba nossa expressão ou vontade de olhar para o Brasil dentro da sala de cinema. Apesar de tudo, o Quarto Ato continuará por aqui, fazendo sua parte para que a arte continue vibrando, transformando e levando diferentes discussões à sociedade brasileira. Nós resistiremos principalmente porque, do lado de cá, também somos artistas.
Editorial. O show de todo artista tem que continuar
A eleição de Jair Bolsonaro à presidência do país traz dúvidas em relação à existência do cinema brasileiro. A história pode ser repetir?
Mas voltamos. Após a sombria era Collor, o chamado “Cinema da Retomada” deu conta da ascensão, e a nossa identidade cultural já não era a mesma dos grandes estúdios de cinema ou ligados a TV. Fomos descobrindo um cinema ainda mais plural, e é visível que esse processo continue até hoje. Por falar em hoje, não é de se assustar que os artistas brasileiros estejam receosos que toda essa história possa se repetir com Jair Bolsonaro, presidente eleito no último domingo, 28, com quase 58 milhões de votos. A democracia pode trazer algumas verdades duras, como o fato de o Brasil ter legitimado um projeto bélico-religioso como a salvação do país.
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Essa ameaça, porém, não é bem uma novidade. Em 2016, quando Michel Temer assumiu a presidência após o impeachment de Dilma Rousseff, tratou de excluir o Ministério da Cultura. Com a revolta da classe artística e da repercussão internacional, porém, a decisão não durou muito. O ministério vem se mantendo de pé apesar dos trancos, e até teve um líder sem caráter golpista, o diplomata Marcelo Calero, que também não durou muito tempo; pediu demissão após se pressionado por outro ministro de Temer em um processo criminoso. O ministério completamente imaturo chegou ao ponto de, hoje, ter a frente Sérgio Sá Leitão, jornalista que incentivou recentemente que o TSE investigasse o ex-Pink Floyd Roger Waters por ter enxergado num manifesto contra o fascismo, uma campanha eleitoral. O mesmo ministro que parabenizou a vitória do presidente que irá excluir o ministério do qual é chefe.
Depois dessa trajetória, chegamos a Bolsonaro. A expectativa é que o deputado federal pretenda ser um entremeio de Collor e Temer com uma pitada de autoritarismo. Declarou que irá eliminar o Ministério da Cultura e reduzir a pauta a uma pasta ministerial. O plano de governo com que Bolsonaro foi eleito sequer cita a cultura e sua equipe tampouco se pronuncia sobre. Se para Paulo Guedes, futuro ministro da economia, nem o bloco Mercosul é prioridade, porque podemos pensar que a cultura será num governo que carregou como principal muleta eleitoral o armamento social? Dayane Pimentel, presidente do PSL na Bahia, disse numa entrevista publicada ontem, 30, que o presidente irá fiscalizar a agenda cultural e intelectual do estado. É um monitoramento que nos lembra outra página infeliz da nossa história.
Mas apesar de toda ameaça, há esperança em torno da resistência de uma nova safra de artistas. Cineastas, músicos, bailarinos, teatrólogos, e uma penca de pensadores de uma arte que vem se tornando cada vez mais política - não aos moldes do Cinema Novo, porém ainda mais assertiva pela pluralização do acesso democrático. Mas entendemos que a arte, em sua essência, é como a Força Estranha de Caetano Veloso, é um ímpeto, uma expressão imediata, é naturalmente resistência. Por essa perspectiva, é justamente num período de crise que tem mais potencial para aflorar ideologicamente. Glauber Rocha, o pai do cinema brasileiro como revolta, deu uma declaração em pleno regime militar brasileiro que muito parece ter a ver com os dias de hoje: “A ditadura nunca foi desculpa para não fazer cinema”.
É em torno dessa resistência que vive a esperança do título deste editorial. A frase é retirada de O Bêbado e a Equilibrista, uma das mais brilhantes músicas em referência às barbaridades da ditadura. Composta por Aldir Blanc e João Bosco, conhecida na interpretação emergencial de Elis Regina, a canção faz uma trajetória da cultura que atravessou um dos tempos mais obscuros de nossa liberdade, e resistiu como uma equilibrista. Mesmo sabendo que poderia cair, machucar-se, ou até mesmo deixar de existir, o show continuou até à reverência seguida de palmas da platéia.
Esperamos que essa história não se repita, que o projeto de privatizações, os acordos com Donald Trump, a hiper vigilância na educação brasileira, e uma série de outras diretrizes, não iniba nossa expressão ou vontade de olhar para o Brasil dentro da sala de cinema. Apesar de tudo, o Quarto Ato continuará por aqui, fazendo sua parte para que a arte continue vibrando, transformando e levando diferentes discussões à sociedade brasileira. Nós resistiremos principalmente porque, do lado de cá, também somos artistas.
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