O multi-instrumentista Hermeto Pascoal tem uma fala muito bonita no documentário “Hermeto e o Quarteto” de Francis Vale (ainda a ser lançado), sobre uma viagem que fez aos Estados Unidos quando não entendia o inglês: "A música não tem idioma, a música é o sentir". Em outro momento, diz: "A música é como o vento, como as estrelas, como o céu, como as montanhas. Não é de ninguém. Principalmente o ar que a gente respira”
O depoimento é sobre o cinquentenário do único álbum do Quarteto Novo, lançado em 1967 por um grupo instrumentalista que além de Hermeto, era formado por Theo de Barros, Heraldo do Monte e Airto Moreira. Sem uma só palavra, oito músicas acessam quase matematicamente (notas e arranjos) a imaginação do consumidor de um estilo musical que diz mais de si mesmo que as letradas.
É mais ou menos essa compreensão do termo “música” que explica o conceito surtado de “ARTPOP”, terceiro album de estúdio da cantora norte-americana Lady Gaga. Não que Hermeto defenda Gaga, isso não sabemos, até porque sempre demonstrou desconfiança diante o imperialismo cultural. Inclusive protagonizou há alguns anos um pequeno conflito com Caetano Veloso por sua declaração de que a melhor música feita no mundo é a norte-americana. Mas no álbum, Gaga é submetida na maioria das faixas à interferência de uma balada incessante que, por imposição, expressa-se mais que sua voz e que sua composição inspirada. “Artpop" questiona os "barulhos que chamamos de arte”.
É importante lembrar que Gaga nasceu da indústria que lhe manteve, e que isso sempre a fez assumir o desafio de se reconhecer "contemporânea". Gaga explodiu em 2008 cantando sobre fama, dinheiro, beleza, indo aos extremos do sucesso, da influência, ainda subestimando a responsabilidade do ícone que se tornou numa rapidez que só a indústria americana é capaz de massificar . Em seguida continou a falar sobre o mercado cultural, como o romance milionário que escreveu com os homens de paletó que avaliam seu preço em um dos clipes mais vistos da história do YouTube. Passando por “Born This Way”, sua fase mais emocionante, Gaga apresenta posteriormente o que intitulou de sua liberdade: “Artpop”.
Esse ponto nos leva a voltar alguns anos, mais de dois milênios para tentar ser específico. Como Sócrates, o filósofo mesmo, nada escreveu, seus pensamentos eram transmitidos na oralidade e nesse meio tão “instável” permaneceu até que Platão os escrevesse. O teórico Marshall McLuhan reúne esse pensamento apontando que Santo Tomás de Aquino entendia que nem Sócrates e nem o seu Senhor (Deus no céu, Cristo em Terra), confiaram seus ensinamentos à escrita. A ideia é que os livros eram uma expressão que individualiza o homem que antes compartilhava em grupo. É nessa desconfiança sobre uma próxima possibilidade de comunicação, que Gaga aponta o dedo. Que Arte é essa que computadores são capazes de criar?
Gaga é testemunha de uma fase musical eletrônica pós década de 90 que ultrapassou os “limites” que se popularizam na figura dos DJ’s muito antes disso. Hoje essa música é abertamente sintética no objetivo de ser elétrica, pulsante, e vende por essa proximidade ao experimental, por parecer abstrata, livre. As batidas rítmicas que emulam uma sensação de êxtase, um sentimento intraduzível às palavras. No Spotify, maior streaming de música mundial, as músicas mais virais da Alemanha (país influência explícita de Gaga) são em sua maioria integralmente eletrônicas. No Brasil, os pops e funks elétricos permanecem no topo das mais tocadas.
É quase um pacto entre a ideologia de autossuficiência da indústria com seu receptor que está tão padronizado quanto aberto a "experiências novas". “Artpop” não é o padrão da artista que se popularizou falando da riqueza e beleza, mas aponta à fama que não vive necessariamente no artista, mas na demanda tecno-pop de um mercado tão confuso quanto as próprias demandas consumidoras.
Mas assim como Gilberto Gil cantou em 1969, Lady Gaga também entende que o “Cérebro Eletrônico” é só uma ferramenta para a vida que acontece em algum lugar por debaixo de aparências digitais. De modo imensamente distinto, claro, porque enquanto Gil "brinca" com o termo que não o integra, Gaga se excede ao limite da criatividade digital emulando uma imersão no próprio conceito ainda indefinido de música e de arte. Fazer pensar nesse caminho o que se produz e se consome no exaustivo mundo pop.
Ouvir as faixas do álbum na sequência original é uma experiência sonora angustiante, nervosa mas imensamente enérgica. É crer, como Hermeto, que o som é capaz de entregar sensações, de evocar sentimentos. Não por coincidência, o nome da turnê que o acompanhou se chama “ArtRave” – a canção ‘Swine’, por exemplo, alcança um nível inimaginável da intervenção sintética. Ouvindo dentro de um ônibus lotado, voltando para casa, fechei os olhos e, de repente, estava numa rave ouvindo um DJ aleatório. Independente de não parecer autêntica, a música me transportou.
E “ARTPOP” não precisa ser categoricamente bom para fazer sentir isso; estamos falando de reações, de pensamentos, de humanidade. Assim como esses terrores americanos que independem de uma questão qualitativa para fazer a plateia chorar ou passar mal; a sensação que ultrapassa a consciência separatista que vive a crítica de um modo geral. A arte excita, move, sem que para isso precise fazer o completo “sentido”.
Lady Gaga literalmente abandonou o desafio, cancelando sua turnê por uma série de fatores. Hermeto continua aí estimulando ouvidos, fazendo de sua música um experimento universal que conquista muito além da língua. O cérebro eletrônico do Quarteto Novo precisava ser mais específico que o barulho, e talvez por isso não tenha se desgastado.
A questão não é comparar a música de Hermeto com a de Gaga, mas perceber a partir disso a arte que a cantora americana quis decifrar como um jogo mecânico que é genérico e instável na mesma medida. As batidas computadorizadas podem caotizar, desregulamentar, comover e animar igualmente. Essa “afirmação” merece outras releituras, mas supondo que sejam seu único objetivo, nada as impede de serem vistas como uma expressão de uma necessidade para um certo momento e para um certo público diante um modo tão “novo” de se produzir som.
Ou seja, podemos e devemos chamar de arte independente de sua permanência. Ainda não sabemos se o tempo de uma noitada durará cinquenta anos.
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