Nós, novo filme de Jordan Peele, é mais uma aula necessária
sobre o atual momento dos Estados Unidos na Era Trump. Podendo ser traduzido
facilmente como United States, o longa Us é um exemplo de obra que já nasceu
relevante, apesar das tristes razões que motivaram a sua existência. Assim como
Os Oito Odiados, Infiltrado na Klan e Corra!, Nós é relevante, cru e
socialmente importante.
Depois de lançar Corra!, o diretor retorna confiante na
própria visão, visto que, mais uma vez, mistura com bastante esmero e equilíbrio os gêneros como comédia e horror. Desta vez, o seu roteiro acompanha
uma família de férias na praia e enfatiza, mesmo com todo ambiente divertido, uma atmosfera angustiante, como se algo estivesse muito errado ao redor dos
personagens. Quando uma família surge na porta dos protagonistas, a vida do
casal e dos filhos entra em uma enorme sequência de jogos psicológicos e físicos,
parecido com o que Michael Haneke fez com o seu Violência Gratuita.
No entanto, Peele vai além do diretor francês. Apesar de
flertar com o terror mais físico do que psicológico, o diretor se diverte com o
inusitado e brinca com o bizarro que o horror pode oferecer. A influência de
John Carpenter, por exemplo, é fortíssima. Quando pensamos que há
justificativas cientificas para tudo aquilo ocorrer, o roteiro entra em um
caminho absurdamente fantástico, como se fosse vários filmes habitando em um só,
algo que brinca com a própria proposta da obra. Isso traz impacto e receio por
seus personagens.
E a força motriz que movimenta todo o longa é Lupita Nyong’o.
Dona de um talento memorável, a atriz entra no gênero de horror como se fosse
um velho conhecido seu. Sua atuação é espetacular, logo que ela interpreta duas
personas completamente distintas e que criam a impressão de realmente existir
duas pessoas ali. Sua expressão, fala e até o modo como se movimenta causam
estranheza e um desconforto extremamente desconcertante. Sem detalhes, mas é
incrível conferir essa atriz chorar em desespero.
Mesmo com todas as alegorias, Peele, finalmente, vai fundo no terror
físico e mostra como causar nojo ou medo. Diferentemente do que o gênero se
tornou, com tortureporns idiotas como Jogos Mortais e tantos outros, o diretor
causa impacto através da sua edição de som, que faz com que as tesouras dos
vilões sejam como espadas, e da sugestão, que sacaneia com o que vamos assistir em breve. E,
quando finalmente vemos a violência, o diretor nos surpreende com momentos
grotescos que, além do desconforto, trazem o riso, como a cena na casa
da personagem da sempre talentosa Elisabeth Moss, onde a câmera tem uma abordagem
rápida, quase como se fosse um clipe. É impossível respirar e, quando, enfim,
sossegamos, o diretor evidencia o humor escroto que nos diverte com violência.
Mas o filme não é sobre isso.
Nós é uma obra de arte que nasceu indo diretamente para o pódio
dos melhores filmes do gênero, conhecido desde o princípio por criticar ou
satirizar momentos da sociedade. A inversão de conceitos entre os
protagonistas, por exemplo, é destacada desde o início. O papel do homem em
situações que exigem a presença masculina é revertido por várias sequências que
o acusa nessa sociedade presa a masculinidade tóxica, onde o homem é sempre o
mais forte e inteligente. Winston Duke incorpora esse papel e desconstrói o
elemento do líder e chefe de família que sabe como proteger os demais.
Já as mulheres tomam conta do papel principal na ação,
horror e no desenvolvimento de todos os personagens. Lupita representa essa
força. Sua presença intimida e ainda garante sequências de nojo, onde a
curiosidade é muito mais forte que a vontade de cobrir os olhos. Já Moss
comprova de novo o quão divertida pode ser. Apesar dos seus poucos minutos de
tela, suas duas cenas exibem a personificação da mulher rica hétero cis que
quando, finalmente, precisa de ajuda, acaba sendo sabotada por ela mesma. A sequência da caixinha de som, que sai da música dos Beach Boys para entrar no ritmo de música
negra, diz muito sobre isso.
Além disso, Us ainda desenvolve um comentário importante
sobre segregação e privilégios entre as famílias. Discutir os defeitos dos
outros, por sinal, é muito mais presente e forte que os comentários sobre
racismo. O roteiro se inspira em Além da Imaginação (série dos anos 1950 que
ganhará uma nova versão pelas mãos de Peele) e comenta de modo social como os privilégios
de alguns subjugam as qualidades dos outros.
Esse privilegio, por sinal, é explanado de forma eficaz através
do figurino dos vilões. A cor vermelha, predominante nos republicanos, sobrepõe
o azul dos democratas, inclusive em uma cena na praia envolvendo um frisbee, a
qual o diretor já garante uma pista do que está se aproximando. O racismo,
obviamente, também se destaca, seja com os diálogos irritantes da família branca
ou da brincadeira que o diretor coloca na máscara do garoto queimado. Enquanto que,
há 100 anos, inúmeros diretores pintavam os atores brancos para interpretarem
negros, conhecido como Blackface, o diretor põe um saco branco em um ator
negro, invertendo os papeis e mostrando que os assassinos continua pertencendo à população branca.
E, obviamente, existe a discussão do governo Trump, que mistura
propagandas com comentários sutis sobre o que as pessoas acham da gestão. Os detalhes
são dos mais diversos, desde a ideia dos figurinos dos personagens, como o
branco da protagonista que vai ficando vermelho de sangue até ela se tornar um deles. Outras dicas, por sinal, fazem com que o diretor se divirta com pistas
que garantem desenvolvimento do que vai acontecer no futuro, como o adesivo da família
no carro e os vários quadros espalhados pela casa da família . É um estudo perfeito de semiótica.
Nós, assim como Corra!, veio para ficar. É um filme de
camadas alegóricas, com diálogos ricos, com um humor na medida e com
personagens identificáveis. É uma obra recheada de substâncias que, assim como a
sombra dos personagens na praia, vai nos perseguir por um longo bom tempo. Acompanhado da trilha sonora, que parece ser uma ópera misturado com rap, Nós é uma bizarrice, assim como um privilégio
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