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TAG inéditos #1: Um Casamento Americano (2019) | A dívida histórica que não para de aumentar


A dívida considerada histórica, na verdade, não e antiga o suficiente para alcançar o nível histórico. É atual. A abolição da escravatura no Brasil mal completou cento e trinta anos. O apartheid acabou há míseros 25 anos. O movimento Oscar So White ainda precisou acontecer em plenos 2016, em que internautas reclamavam a "palidez" de basicamente todos os indicados aos prêmios da Academia. E mesmo assim, ainda ouvimos e lemos, no nosso dia-a-dia, manifestações racistas disfarçadas de opinião. Dessa forma, ler um romance que traz como assunto central de sua trama o racismo, mesmo que disfarçado e escondido entre uma história particular, é mais do que uma leitura prazerosa, é basicamente uma aula de história contemporânea. 

A obra da autora afro-americana Tayari Jones foi escolhida como um dos livros do clube do livro da Oprah, sendo também a autora representante para a edição de janeiro do Clube do Livro Tag: experiências literárias, na série inéditos, que dá origem a esta coluna. Assim, "Um Casamento Americano" nos insere em um Estados Unidos atual em que (alguns) negros vão para "faculdade de negros", escutam frases racistas no dia-a-dia e precisam dirigir devagar suas Mercedes para não serem parados pela polícia nem parecerem suspeitos. Toda essa história e reflexão dessa sociedade atual é feita por debaixo dos panos e de certa forma quase escondida. O que somos apresentados logo de cara é a história de Roy e Celestial, casal de negros que, rotineiramente, tenta decidir se é ou não a hora de ter uma criança. 

Ambos são bem sucedidos em suas carreiras e têm a vida bem determinada e caminhando na direção do crescimento. Roy é de uma cidadezinha do interior de Atlanta, ao mesmo tempo em que fugiu dela para a faculdade o mais rápido possível. Celestial é inspiradora, artista e aspirante a não ser somente "a garota do Sul". Ambos parecem se completar de forma desvirtuosa ao mesmo tempo em que harmônica, como típicos recém-casados. Mas a vida dos dois é inteiramente modificada quando Roy, acusado injustamente e "reconhecido" principalmente por sua cor de pele, é condenado para 12 anos de prisão. 

A história principal, infelizmente, é monótona. Trabalha na zona do conforto muitas vezes e apressa assuntos que poderiam ser trabalhados com maior sutileza e cuidado. Mas ao mesmo tempo, entrega logo de cara seu objetivo, o de denunciar a grande injustiça no sistema judiciário dos Estados Unidos. Na mesma medida que o filme "Dogville", de Lars Von Trier, o livro coloca logo nas primeiras páginas sua crítica a um sistema americano desvirtuoso e entrega uma situação particular, mas que já é rotina no dia-a-dia de um negro estado unidense. E claro, brasileiro também. 

A polícia, os juízes e a própria população são os verdadeiros culpados, enquanto Roy, fadado a pagar por erros culturais e sociais simplesmente por ser negro, vê anos de sua vida jogados fora, enquanto ele mesmo passa por transformações de caráter e comportamento de forma simultânea em que vê sua perspectiva de crescimento ser praticamente arrancada desde a raiz. Roy representa muito mais do que seu próprio caso. Sua busca de identidade, apesar de um pouco superficial, é um dos elementos chaves do livro, bem como de outros personagens, que buscam ser mais que  "um negro presidiário", "um negro sem pai" ou até "uma negra 'privilegiada'". 

O livro é satisfatório, apesar de poder afirmar com segurança que tinha potencial para algo maior. Claro, eu não sou o público-alvo do livro, muito menos posso dizer que passei por um décimo do que qualquer um dos personagens passou, de modo que o livro não me atingiu como deve ter atingido outras pessoas mais próximas da cultura da história. Segundo dados do "The National Registry of Exoneration" (disponibilizado no infográfico da própria TAG), afro-americanos tem sete vez mais chances de serem sentenciados por crimes que não cometeram, quando comparados com pessoas brancas. 

Mas mesmo assim, é obra que pretendo deixar na minha estante - pelo menos por um tempo. 




TAG inéditos: Um Casamento Americano (2019) 

 A dívida histórica que não para de aumentar


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