Em seguida, a
diretora apresenta Inácio, dono desse restaurante de classe média, isolado no
centro de São Paulo. Sabendo do fracasso prematuro de seu estabelecimento, o
homem gerencia de forma agressiva, deixando os seus funcionários, em especial o
cozinheiro Djair, em uma situação de relação abusiva. Após essa introdução, que se desenvolve entre os corredores do lugar, o restaurante sofre uma tentativa de assalto, o que força Inácio a tomar medidas violentas contra os assaltantes.
A diretora, que
também assina o roteiro, esbanja uma genialidade inesperada durante os 97
minutos de projeção. Em seus atos, Gabriela expõe um Brasil desesperado por uma
atenção, dado que os personagens representam símbolos distintos da nossa nação
em 2018, algo parecido com o que Quentin Tarantino fez
em Os Oito Odiados, de 2015. Esses personagens representam a
descrença no Estado, o direito do cidadão de bem, o armamento como desculpa de
defesa e a relação patrão-empregado, explorada, obviamente, pelo primeiro. Uma
receita que torna as vítimas em um esboço de um país tomado pelo ódio e
violência.
Inácio, por
exemplo, sendo o protagonista da obra, representa uma parcela significativa do
Brasil. O dono do restaurante, vivido por Murilo Benício, reage ao
assalto, matando um dos bandidos e rendendo o outro. O seu discurso, no
entanto, resolve todo tipo de enigma dentro daquele personagem. “Não adiantou
chamar a polícia da última vez”. A partir disso, ele, que se mostrava
extremamente elegante e cordial, se exibe como um sociopata. Sua disposição
nasce do princípio de que àqueles presentes mereciam vingança, não só pelo
assalto, mas pela humilhação envolvida. E Gabriela faz isso sabiamente. Sabendo
que vive em um país que aplaude torturadores, não existe gênero mais perfeito
que o terror protagonizado por um slasher. Nossos demônios são ampliados.
A diretora, no meio
disso, ainda propõe em dar consistência aos seus personagens, mesmo
eliminando-os rapidamente. Ela se envolve com o slasher movie, mas respeita
todos presentes, que, precisam, sim, de desenvolvimentos. Não só pela empatia,
mas pela construção de tensão, que nos faz temer involuntariamente pelo destino
de todos, diferentemente do que o gênero tem se mostrado atualmente, onde os
personagens pouco importam, sendo meros obstáculos para o assassino. Os
protagonistas e seus temas são relevantes.
Já o elenco,
composto por Camila Morgado, Humberto Carrão, Ernani
Moraes, Jiddú Pinheiro, Ariclenes Barroso, é
invejável. Todos se dão ao máximo, seja no olhar, nos poucos diálogos ou nas
feições que vão do medo ao ódio. No entanto, o filme pertence ao trio Murilo
Benício, Luciana Paes e Irandhir Santos, que
se transformam durante os atos.
Benício, que começa
de modo elegante, mas com uma raiva crescente dentro de si, se mostra um ator
muito mais significativo que aquele de novelas. Aqui ele interpreta um monstro
enjaulado, ansiando pelo sangue de suas vítimas. Há momentos, inclusive,
claramente inspirados em Anthony Hopkins em O Silêncio
dos Inocentes. O seu personagem simplesmente dá medo.
Já Luciana, dona de
um talento incontrolável, surge aqui como uma personagem doce e que, como seu
amante, se transforma em um monstro, violenta até mesmo no modo de se
alimentar. Há, inclusive, uma cena amorosa entre ela e o protagonista
extremamente competente, rivalizando em realismo com aquela de Boi
Neon e de grotesco com a de Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós
Dois. É, desde já, uma das cenas mais icônicas do cinema contemporâneo
brasileiro.
E com Irandhir o filme ganha mais forças. Há
uma sequência envolvendo o seu personagem e o de Benício que facilmente não
será esquecida, visto que o ator, apesar de demonstrar medo, desafia o seu
antagonista e o provoca com uma raiva descontrolada. Tais transformações
durante esse ato são representativas para a conclusão da obra que, felizmente,
depende do astro para existir.
Em sua conclusão, é
perceptível que o longa possui mais esmero que qualquer outro metido a terror
de 2018. Sua trilha sonora, inclusive, possui arranjos próximos do Giallo,
gênero italiano. A trilha e edição de som mesclam órgãos e sintetizadores,
criando um aspecto de lugar menor do que ele já é.
O esmero também
segue a mensagem que a diretora quis passar. Os personagens são profundos, os
temas políticos são elegantemente explorados com calma e o filme não se torna
uma válvula de espace de sadismo para quem é fã do gênero. O Animal
Cordial é um filme que necessita ser visto e comentado, assim como o
outro horror nacional de 2018, As Boas Maneiras, que se apropria do gênero
para contar uma história que nós, brasileiros, precisamos escutar.
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