No cinema de Kleber Mendonça Filho, a invasão é um antagonismo exposto apenas como um interlocutor do verdadeiro inimigo, esse que raramente é visível. Em O Som ao Redor, vive um perigo que abandona o espaço rural e reverbera em novas configurações urbanas, porque o vilão não é uma coisa ou uma pessoa, mas uma ideia. O genocídio latifundiário que fundou o país permaneceu como estrutura numa vizinhança de classe média em Recife, e a figuração de uma vingança confunde como se fosse o principal conflito.
Quem é o inimigo de Bacurau?
A ousada aposta de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles para resgatar o "passado"
Em Aquarius, é a invasão de um poder financeiro que doma as cidades atrás de futuro, e a construtora Bomfim, embora se corporifique em dois homens ignorantes, é apenas um dos braços do poderoso chefão. Em Bacurau, como a invasão impõe uma violência em seu sentido mais cruel, o inimigo perde a face para a crueldade. Mas existe mesmo um inimigo?
O roteiro de Kléber e Juliano Dornelles investe numa estrutura aberta, cujos mistérios se contentam com o limite do segredo. Fica claro muito cedo que a história é sobre um vilarejo que ao sumir do mapa vive o suspense de um ataque. Esse esquema surpreende quando encontra também o outro lado, e é à partir de então que o filme se importa em inventar dois microcosmos: o ataque e o atacado. A defesa (seus integrantes, razões e tecnologias) é um lado explícito, mas o ataque permanece secreto até mesmo quando, teoricamente, se expõe.
O grupo de hiperbrancos norte-americanos estão em Bacurau para matar os diferentes. É como as células dos órgãos, quando se recusam a reconhecer as outras como pertencentes ao mesmo corpo e as transformam em tumor ou as matam gerando um câncer destrutivo. Os assassinos estão matando “um outro tipo de bicho”, que fala “brasileiro”, e é por isso que essa proposta de crueldade encontra o discurso imediato da espetacularização da violência que já vimos, por exemplo, em Westworld. Veja só, parece óbvio, não é? Mas esses não são os inimigos de Bacurau.
Sabemos que essa equipe norte-americana mata por diversão, contabilizando as mortes como num reality show, mas principalmente por uma recompensa, imposta por alguém que nunca se vê, mas que põe as cartas na mesa com uma autoridade onisciente. As ordens nunca são audíveis, mas a devoção às regras do jogo são cumpridas em tempo real, muito porque competem entre si. Há uma razão?
Isso nos leva a um termo muito dito, mas pouco assertivo ou conceituado: a “uberização” como ferramenta natural de um “novo tempo neoliberal” é a voz ampliada de quem já domina o poder. Parece loucura criar uma relação com Bacurau, mas veja só. Essas empresas multinacionais não se comprometem com os trabalhos que geram a partir das crises financeiras pelo mundo.
Pessoas são atraídas para cumprir um acordo trabalhista, principalmente pela ilusão de que podem, finalmente, serem donas do próprio emprego. Mas para garantir uma renda compatível às necessidades infladas dos países em decadência financeira, as mesmas pessoas precisam estender ao extremo a jornada de trabalho sem qualquer proteção judicial ou garantia de respeito humano. Trabalhadores que são braços do poder que, de longe, pode se aproveitar da decadência e permanecer intacto. Indo para o trabalho um dia, o ônibus que eu estava colidiu com um motoqueiro que trabalhava para a Rappi. Ele quebrou o braço enquanto trabalhava. Não tinha para quem pedir ajuda. O emprego e o seu empregador, simplesmente “não existem”, são apenas ordens enviadas via smartphone.
O inimigo de Bacurau está acima, muito acima, e mexe diretamente com o desejo de superioridade - e é por isso que completa tão diretamente o discurso de colonialismo cultural. A cena da cabeça destroçada evoca uma ancestralidade indígena que calciona essa tensão, e ao final, as ideias se unem. Esses homens brancos estão ali por uso de seus próprios desejos por uma força que é superior ao palpável. O poder financeiro que controla o país, as crises no mundo, os líderes extremistas. O inimigo de Bacurau é quem manda, não quem obedece.
É por isso que Bacurau não é principalmente sobre a violência física, até porque a resposta do povoado à ameaça pode ser mais violenta que a dos americanos, mas sobre a origem tão distante e inatacável do bem-estar de quem controla a violência. Afinal, 80% da salas de cinema de um país continental ocupado por Vingadores faz parte dessa violência tão silenciada. Na primeira cena de contra-ataque, o estrangeiro vestido de Indiana Jones planeja matar um homem negro, gordo e nu que cultiva plantas perto de um recinto de barro e palha - a metáfora colonial pode ser óbvia, mas encontra um grau de urgência ao evocar uma cena do passado protagonizada por um novo vilão, já que o “nosso colonizador” só mudou de continente, foi da Europa para a América do Norte.
Não à toa esse discurso está embutido em um filme brasileiro que conquistou o júri do 72º Festival de Cannes, composto majoritariamente por profissionais fora dessa América invasora, e que jamais poderia representar o Brasil na corrida por uma vaga no Oscar 2020 de Melhor Filme Internacional. Bacurau pode parecer tolo nessa perspectiva porque denuncia o óbvio que vivemos há mais de cinco séculos, mas sua força se revela ao não impor a passividade a esse povoado brasileiro e fazê-lo revidar no ímpeto de proteção. Lunga, o cangaceiro queer respeitado pelo próprio povo, sabe reconhecer o ataque porque já o viveu - se não ele, tantos outros antes dele, que lavaram o chão, mas deixaram as marcas de sangue cravadas na parede. Bacurau, seu povo, suas casas e seus bichos são o próprio museu de memórias que se mantém vivas para que possam reagir caso, novamente, tentem apagá-los do mapa.
Matando quem mata não se cala quem manda matar, mas é a força da resposta que pode destruir a ameaça pouco a pouco. Bacurau, afinal, é uma convocação à defesa identitária da dignidade contrária ao conceito fascista de um nacionalismo cruel. Alerta, com uma visceralidade impressionante, que o inimigo ainda está solto apesar de “morto” na tela. Ainda estamos sendo atacados. Neste exato momento.
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